quinta-feira, 31 de maio de 2012

O Vampiro de Edimburgo - Capítulo X

by Kodama e Fantin

Era o início do ano de 1012, em plena guerra do exército de Deus contra as forças de Lúcifer. Poucos humanos privilegiados sabiam da existência dessa luta enquanto a maioria vivia apenas o terror dos ataques dos demônios e a dádiva de, algumas vezes, escaparem com vida, graças às ações de seus protetores celestiais incógnitos. A Escócia era uma terra de ninguém, dividida entre diversos clãs que tentavam viver em paz dentro dos limites de suas terras, protegendo-as de usurpadores. Numa região às margens do Rio Clyde, vivia o clã dos Sinclair. A aldeia onde viviam passou a sofrer constantes ataques de uma horda de vampiros que se estabelecera no castelo de Malachy, próximo à área onde hoje fica Edimburgo. Anjos guerreiros foram designados para proteger o líder do clã e sua família. O anjo de nome Elyk ficou encarregado de ser o protetor de Cathela, a filha mais jovem do Chief. Sem saber, com sua beleza e inocência, a donzela foi cativando o coração do anjo guerreiro. Aquele que fazia tremer seus oponentes pela força e habilidade na arte da guerra, arrojando demônios para as profundezas do Inferno, acabara sendo vencido por uma humana de natureza afetuosa e temperamento vivaz, que nem ao menos sabia ter encantado tal ser enviado dos Céus para protegê-la. Elyk lutou de todas as maneiras contra esse sentimento proibido pelo Criador. Até que um dia não resistiu e acabou materializando-se para que pudesse tocar sua amada protegida. Fez isso enquanto ela dormia, mas, como se percebesse sua presença, a jovem acabou acordando e o viu. A princípio pensou que ainda sonhava e que a visão não era real. Contudo, o toque de seus dedos no rosto de Elyk desencadeou uma onda de desejo no infeliz anjo, precipitando um beijo no rosto de Cathela. Foi então que ela se deu por conta de que o ser celestial a sua frente não era uma ilusão ou um simples sonho. Ele era real. A despeito dos frequentes embates contra os vampiros do leste, Elyk passou a materializar-se com maior assiduidade, apesar dele saber da proibição divina. Logo Cathela também estava enamorada perdidamente por seu protetor. Um dos companheiros de Elyk descobriu o romance e aconselhou-o a deixar em paz a jovem. Chegou a propor que trocassem de lugar. Ele faria a proteção de Cathela e Elyk pediria para ser transferido para outro posto. Porém, o coração o impediu de ouvir o amigo.
Elyk provocou a ira do Senhor. Chamado e repreendido, foi obrigado a deixar de ser o protetor de Cathela e terminantemente proibido de vê-la ou seria punido com severidade.
Com o passar das semanas, a saudade de Cath crescia em seu peito, envenenando a noção de obediência devida ao seu superior. Não resistindo mais a falta de sua amada, procurou-a em uma manhã que a viu sozinha. Angustiada com sua ausência, Cath suplicou que ele nunca mais a abandonasse. Passaram a se encontrar diariamente, sempre que Cath estava só. Ela não conhecia seu novo guardião. Disse que podia sentir sua presença, mas jamais o vira. Às vezes podia ouvi-lo na forma de um sussurro ou de um suspiro e até como um vulto ao seu redor, mas nunca vira seu rosto. Apesar de saber que ele existia para sua proteção, havia algo na sua presença que incomodava. Não sabia explicar, pois era apenas uma sensação. Elyk jurou a ela que procuraria o Criador e rogaria que o tornasse mortal para que pudessem viver suas vidas em comunhão, fazendo florescer e frutificar seu amor. Neste dia, em que decidiu fazer a escolha pela humanidade, o desejo falou mais alto que nunca e Cath entregou a ele sua inocência e seu corpo. Amaram-se intensamente, de uma maneira tal que Elyk jamais pudera imaginar que fosse possível. Queria aquela mulher por todos os dias de sua existência e até que a morte os levasse de volta ao Criador. Eles haviam sido feitos um para o outro. Tinha certeza que sua súplica e o amor que transbordava por todos seus poros seriam capazes de mudar a opinião Dele.
Quando Elyk finalmente tomou coragem para falar com o Pai, recebeu um chamado de última hora. O sol já havia se posto. A aldeia dos Sinclair estava sofrendo um ataque violento dos vampiros do Leste. Aparentemente todos os guardiões locais haviam sido convocados para uma falsa reunião, que os afastou da aldeia, propiciando totalmente a ação dos demônios. Quando lá chegaram, encontraram destruição quase total. Os corpos dos aldeões massacrados encontravam-se dilacerados por toda a parte. Desesperado, Elyk procurou inutilmente por Cathela até que encontrou seu pai agonizante. Chegou a tempo de ouvir suas palavras antes do último suspiro. Materializando-se para amparar o velho Chief, esperava que ele pudesse ajudá-lo a encontrar Cath.
- Eles a levaram... Elyk... – a voz era apenas um fio quase inaudível e surpreendeu Elyk, pois ele não imaginava que o velho o conhecesse.
- Por que diz o meu nome?
Os olhos quase vítreos adquiriram um brilho de indignação e revolta ao encarar o anjo.
- Você... Você nos traiu... Quem é você, seu miserável?... – As poucas forças que ainda lhe restavam fluíram para seu braço que se ergueu no ar tentando atingir o rosto do anjo, que não conseguia entender o motivo daquela revolta.
Com o esforço, soltou um gemido alto e todo o ar restante em seus pulmões foi eliminado definitivamente. O braço erguido tombou para trás e os olhos permaneceram paralisados na face de Elyk.
- Parece que o seu nome foi citado pelos vampiros como o organizador deste massacre – disse um de seus companheiros.
- Como? Acham que fui eu que facilitei este ataque? Isso é um absurdo! – Levantou-se e encarou os demais anjos que o olhavam desconfiados. – Não vou perder meu tempo com invencionices de demônios. Não sei o porquê de meu nome ter saído da boca daqueles "chupadores de sangue", mas sei que preciso encontrar Cathela e vingar a morte de sua família. Saiam da minha frente, se não quiserem terminar essa missão. Vou ao castelo acabar com estes assassinos de uma vez por todas.
Todos se entreolharam. Diante do quadro de holocausto vigente na aldeia, decidiram ficar e ajudar os poucos sobreviventes.
Elyk desmaterializou-se e surgiu diante do castelo. Junto ao enorme portão, Samuel, o companheiro que o aconselhara a deixar Cathela, já o esperava. Em sua magnífica armadura prateada, estava munido de sua espada e pronto para o combate. No entanto, sua expressão não era amistosa quando olhou para Elyk.
- O que está fazendo aqui? Veio completar sua obra? Vai comemorar com seus novos amigos?
- Sobre o que você está falando? Vim para salvar Cathela e acabar de vez com estes demônios!
- Então por que eles dizem que você facilitou o ataque à aldeia? Resolveu mostrar ao Criador que não ficou satisfeito com seus desígnios?
- Você realmente acredita nisso, Samuel?
- Não o reconheço mais Elyk... Depois que se apaixonou por Cathela, passou a ir contra todas as leis celestiais.
Um grito desesperado ecoou do alto de uma das torres.
- Cath! – reconheceu Elyk – Saia da minha frente ou me ajude. Depois resolvemos nossas diferenças.
- Eu vou salvá-la – informou Samuel imperioso.
Sem prestar mais atenção, angustiado com a situação de Cath, Elyk voou para a torre, perseguido por Samuel, que tentava passar a sua frente, retardando-o. Infelizmente, quando estavam a meio caminho para o alto, dois vampiros surgiram para atacá-los. Foi quando o corpo de Cathela surgiu em queda livre rumo às pedras no solo. Elyk ainda pode sentir suas vibrações e seu último pensamento dirigido a ele. Ela saltara para não entregar-se ao chefe do clã dos vampiros.
Simultaneamente, Elyk e Samuel gritaram o nome da jovem, mortificados com a visão de sua morte inevitável. Tomado por uma fúria insana, Elyk se livrou das garras do monstro que o segurava, jogando-o contra o paredão do castelo, e desceu até onde o Cath permanecia imóvel. Samuel da mesma forma se livrou de seu algoz e voou para o alto da torre. Instantes depois, a cabeça de um vampiro ganhava o espaço, num floreio macabro, terminando por cair próximo à Cathela. Abraçando-a, Elyk buscava um resto do calor que sentira na véspera, quando a encontrara pela última vez. Não conseguiu chorar, pois a visão do semblante demoníaco na face decapitada do assassino caído pouco adiante deles, reacendeu novamente o ódio pela raça de sugadores. Abreviando a despedida de seu amor, lançou-se como anjo vingador insaciável contra a horda de vampiros que começava a surgir de todos os lados. Como um louco avançou com a espada em punho literalmente ceifando a vida dos "cães" de caninos afiados que ousavam desafiá-lo. Alguns de seus companheiros retardatários, que finalmente decidiram ir atrás dele, surgiram a tempo de assistir a tragédia em seu momento crucial. Passaram  a combater os vampiros que ainda restavam, ao lado de Elyk.  Samuel não estava entre eles.
O clã dos senhores do castelo de Malachy foi totalmente destruído naquela noite. Os sobreviventes foram obrigados a enfrentar a luz da manhã e viraram pó, juntamente com os restos de seus mortos.
Banhado pelo sangue impuro, Elyk voltou até onde Cathela repousava em seu sono perene. Sua expressão era de serenidade e pareceria estar apenas dormindo, não fosse a palidez mortal e a falta dos movimentos respiratórios. Caído de joelhos ao seu lado, elevou-a nos braços e chorou afinal, como nunca havia feito antes. Perguntava aos céus por que o Criador permitira sua morte. Não conseguia pensar em nada, envolto na revolta que estraçalhava seu coração, quando uma forte luz vinda dentre as nuvens apontou para ele como uma lança acusadora.
- Elyk! – chamou a voz tonitruante – Você traiu minha confiança, me desobedecendo e usando sua espada em uma vingança pessoal.... Por isso estou aqui... Para que receba sua pena pelo crime cometido.
- Eu vinguei a morte de seus filhos... Não traí ninguém. Minha única culpa foi tê-Lo desobedecido pela segunda vez, por amor a uma humana. Acabei de receber minha pena por tal crime ao perdê-la para sempre.
- Por que, Elyk? Eras um de meus preferidos... – A Voz demonstrava grande pesar, mas logo se tornou dura como o aço – A partir de hoje, viverás no limbo como aqueles que acabastes de matar, testemunhas da tua desobediência, se alimentando de humanas como essa em seus braços, a quem condenastes a morte, até o final dos tempos.
- Se essa é a Sua vontade... Agora pouco me importa o que fizeres de mim. Estou morto por dentro de qualquer maneira.
Tomada pela ira divina, a luz tornou-se tão forte a ponto de cegar todos os presentes. Trovões ressoaram nos céus como se fossem lamentos, e o dia, que a pouco raiara, voltou a ser noite. Uma dor excruciante cruzou através do corpo de Elyk, obrigando-o a soltar Cathela e cair no chão contorcendo-se em agonia extrema. Suas asas enegreceram, desintegrando-se no ar em milhares de partículas qual fuligem. Presas grandes e afiadas surgiram em sua boca e um frio polar dominou sua alma e seu coração.
Quando tudo terminou e apenas restou a escuridão, uma chuva fina e o cheiro carbonizado a sua volta, permaneceu ali, paralisado, ao lado do corpo de Cathela, confuso, sem entender nada do que acontecera. Apesar de tudo, custava a acreditar que seu Pai o renegara tão definitivamente. Alguns minutos se passaram. Antes que pudesse continuar com suas indagações silenciosas, percebeu uma sensação de queimadura na pele e os olhos arderam. Era o renascer do dia que se anunciava por detrás do céu encoberto. Talvez se ficasse mais tempo e o sol se libertasse das nuvens cinzentas, pudesse por um fim a sua existência. Porém, quando menos esperava, um manto foi jogado sobre seu corpo e mãos fortes o levantaram do chão, levando-o para o interior do castelo. Reclamou, pensando que fosse um de seus irmãos guerreiros, mas em seguida soube que não.
- O senhor está bem?
- Quem é você? Por que me trouxe para cá?
- Meu nome é Angus, senhor. Eu era escravo destes vampiros. Eles me mantinham cativo há mais de cem anos e o senhor me libertou. Serei eternamente grato, servindo-o como servia a eles. – disse o servo morto-vivo.
- Pode deixar-me aqui a minha própria sorte. Você está livre. Segue o teu caminho e eu seguirei o meu.
- Senhor... Não tenho mais como recuperar minha vida. Todos meus entes queridos estão mortos. A eternidade é minha dádiva e minha prisão. Peço que me deixe servi-lo, Sei o que aconteceu. Talvez possa ajudá-lo a encontrar aquele que se fez passar por vós.
Elyk, apesar de enfraquecido, sentiu uma nova onda de indignação e ódio encher seu peito. A imperiosa necessidade de sobreviver para descobrir o verdadeiro responsável pela morte de sua adorada Cath e aplacar a injustiça cometida contra ele, despontou e tomou lugar em sua nova essência. Alguém os tinha enganado e atraído para longe dos Sinclair e ainda tinha se feito passar por ele, tornando-o um traidor diante de seus companheiros. Não acreditava que Seu Pai pudesse crer nisso, devido a Sua Onipresença e Onipotência, mas já não estava certo de nada, depois do julgamento e punição extrema por que passara.
Ao fim daquele dia de pesadelo, em que assumiu o reino e a fortuna dos vampiros de Malachy, lançou-se até o local em que o corpo de Cathela deveria permanecer sem um enterro digno. Lá chegando, verificou que ela sumira. Enquanto a dor o dilacerava mais uma vez, Samuel surgiu a sua frente. Dessa vez, em atitude mais condescendente, dirigiu-se à Elyk.
- Eu já cuidei do corpo de Cath. Ela estará em paz...
- Deve estar feliz agora. Fui punido como desejava.– Uma espécie de negra e intensa revolta envolveu o espírito do ex-anjo guerreiro que já não confiava em mais ninguém. Um estranho desejo por vingança e por sangue era só o que carregava em seu peito. Não tinha mais amigos, não tinha mais um Pai ou quem quer que fosse para compartilhar seus pensamentos. Estava só e a única energia que o mantinha vivo era o ódio e o desejo de vingança.
- Nunca desejei o seu mal, meu amigo...
- Amigo? Horas atrás você me acusou de traição, acreditando em mentiras a meu respeito!
- Sinto muito ter acreditado nessa mentira... Fiquei revoltado, pois também gostava muito de Cath...
- Melhor ir embora daqui. Já fez o seu discurso de bom anjo. Agora, suma-se!
- Sinto muito, Elyk...
- Esse não é mais o meu nome. Já que não sou mais merecedor de estar ao lado de Quem nos criou, também não sou digno de carregar o nome que Ele me deu.
Samuel o olhou pela última vez frente a frente e desapareceu como uma sombra na noite.
Após esses acontecimentos, não demorou muito para que ele fosse procurado pelo lado sombrio da dimensão celestial. Um enviado de Lúcifer apresentou-se. Seu nome era Kolchak. Sua proposta era simples. Amaldiçoado por seu Criador ele não tinha escolha a não ser a de juntar-se ao exército de seu amo. Entretanto, o antigo guerreiro das forças divinas, apesar de todo o sofrimento, já aceitara a punição de Deus, considerando-se culpado por seu destino. Jamais aceitaria unir-se à oposição de tudo por que lutara enquanto anjo. Expulsou o demônio, assim como o faria em cada um dos séculos seguintes em que Kolchak o procuraria, sempre com a mesma proposta.
A partir desse dia, nascia Kyle Sinclair. Um anjo caído, uma alma perdida, um vampiro torturado em busca de uma vingança que nunca alcançaria.

(continua...)

O que acharam? Que injustiça com o pobre do Elyk, não? Aguardem a próxima semana...rsrsrs
Gostaram do novo visual do blog?
Agradeço mais uma vez às minhas queridíssimas Léia, Nadja e  Lucy por seus comentários, que eu amei, como sempre. Voces são uns amores!
Um hiper beijo carinhoso para todos!

quinta-feira, 24 de maio de 2012

O Vampiro de Edimburgo - Capítulo IX

by Kodama e Fantin

O que estava havendo comigo? Perguntei a mim mesmo, olhando para o vazio a minha frente, embriagado por aquele perfume, mistura de flores e mel, e completamente excitado. Certamente a “fome” estava alterando o funcionamento de meu cérebro. Tinha que parar de pensar naquela bisbilhoteira enervante e tratar de me arrumar para a inauguração de logo mais. Eu tinha pouco mais de seis horas para conseguir uma “fonte”, caso contrário os efeitos da falta de alimento se tornariam facilmente visíveis. No momento apenas um leve cansaço me dominava e, para um observador mais atento, eu passaria por alguém que não dormiu muito bem na noite anterior.
Cheguei ao saguão onde Dominic e sua abelhuda acompanhante, em seu “modo fantasma”, me aguardavam. Ela evitava me olhar, o que era uma novidade. Teria ficado tão apavorada com o que acontecera? Talvez eu fosse realmente desagradável a ela. Anjos nunca se deram muito bem com vampiros. Apesar dela ainda não ter percebido minha verdadeira natureza, os instintos ainda prevaleciam. E os meus, no momento, me atraíam irresistivelmente para ela. Enquanto entrávamos na limusine que nos levaria a filial do banco, fiquei lembrando o gosto de sua boca. Só de pensar nisso, meu corpo reagiu imediatamente e precisei fechar o sobretudo sobre a cintura para não deixar Dominic ou ela perceberem meu estado.
Durante a aborrecida procissão de discursos, inclusive o meu, passei em revista com os olhos algumas das fêmeas que estavam por ali. A maioria estava acompanhada. A minoria tinha idade tão avançada que não resistiria à minha “companhia”. O que eu menos precisava em Praga era ter que me livrar de um corpo ou dar explicações sobre a “morte acidental” de uma idosa em meu leito. O jeito seria tentar uma conquista durante o baile de logo mais. Nunca tinha me sentido tão estranho ao pensar nesse tipo de problema. A cada mulher que avaliava, a imagem de Ariel vinha a minha cabeça. Isso já estava se tornando enervante. Aqueles olhos dourados não me saíam da cabeça. Ela seria a última fêmea com quem gastaria um milésimo de meu tempo, principalmente levando em consideração a sua origem. Apesar de todos os contras, o seu rosto me parecia a cada instante que passava mais e mais perturbador. O fato de saber que ela estava por perto tornava a fraqueza, que me afogava aos poucos, desprezível. Seu aroma impregnava meus sentidos e tirava minha atenção de tudo o mais que me rodeava.
Finalmente a inauguração se deu por encerrada e partimos para a Ópera Estatal de Praga, que abriria suas portas suntuosas para o baile de gala em minha homenagem. Dominic parecia pouco a vontade em seu smoking alugado e com a ausência da irmã caçula que ainda não chegara. Ariel continuava tentando disfarçar seu desconforto com minha presença e eu não conseguia determinar a mulher que me alimentaria nas próximas horas.
Mal havia começado o serviço de coquetel no amplo salão, quando Leonora chegou acompanhada pelo motorista que tinha sido contratado para levá-la até lá. Ela estava deslumbrante, mas também parecia sentir-se desconfortável, principalmente quando os homens presentes cravaram seus olhares nela. Percebi o erro cometido ao convidá-la para esse tipo de baile. Ela era jovem e inexperiente demais...  Dominic correu para recepcioná-la, seguido por Ariel.


Kyle Sinclair


                                            

 “Definitivamente esse não é um ambiente adequado para Leonora”, comentei com Nathanael, sem que Dominic pudesse ouvir. Não queria discutir com ele mais uma vez. Eu devia parecer a “velha tia solteirona da família” fazendo aquele tipo de comentário, mas era a sensação que eu tinha ao notar os olhares de cobiça entre os homens da festa, inclusive de Kyle, por mais que ele tentasse disfarçar. Ou seria apenas impressão minha...Ciúmes... Ciúmes?? De onde saiu esse pensamento descabido? Devia ser o ambiente requintado, a beleza das vestimentas das mulheres e a elegância dos homens. Jamais tinha participado de algo tão luxuoso. Meus resguardados anteriores em geral pertenciam a classes inferiores da sociedade humana. Normalmente os anjos mais novos tinham esse tipo de indicação. Apenas os anjos mais antigos tinham o privilégio de acompanharem pessoas da realeza ou das camadas mais altas da civilização. O mais próximo que eu já chegara de uma festa como aquela tinha sido no ano terrestre de 1733, quando cuidava de um rapaz que era auxiliar na cozinha de um poderoso barão francês. Pude vislumbrar algumas reuniões entre a realeza. Pena que o meu protegido sucumbiu muito jovem numa epidemia de varíola... Voltando à realidade, surpreendi-me quando vi Kyle fugindo da companhia de Leonora, que viera toda sorridente até ele, sendo sutilmente rechaçada. Dominic lhe disse algumas palavras de consolo, que ela facilmente assimilou, logo voltando sua atenção para dois rapazes tchecos que pareciam bem mais interessados nela do que Kyle. Bem, Nathanael teria trabalho pela frente cuidando de sua menina. Dominic estava começando a se sentir mais a vontade e acabara de entabular conversa com uma jovem agradável, que eu já notara demonstrar interesse por ele. Agora eu podia aproveitar meu tempo para cuidar dos movimentos do senhor Sinclair. Onde ele havia se metido? Estava bem perto há poucos segundos atrás...                                                                                       
Finalmente o achei fazendo a corte a uma nojenta de nariz empinado que tinha acabado de chegar desacompanhada. Jogava todo o seu charme sobre ela e isso, inexplicavelmente estava me deixando mal-humorada. Chamei discretamente o anjo da guarda dela a um canto e dei a ficha de Kyle. Prontamente meu colega deu um jeito de afastar a moçoila dele. Olhei na direção do grande conquistador, pronta para ser fulminada pelo seu olhar, mas, ao invés disso, ele apenas lançou um débil sorriso, demonstrando que sabia de minha parcela de culpa na rejeição sofrida. Ele me pareceu tão fraco e frágil que transformou meu júbilo em tristeza. O que estaria acontecendo? Comecei a ficar preocupada por ele. Buscava uma explicação para essa mudança de atitude.
Ouvi os acordes da orquestra que já estava pronta para iniciar a música que comandaria as danças da noite. Kyle aproximou-se de Dominic, pediu licença para dançar com Leonora e dirigiu-se a ela, depois de liberado. Mostrando as fileiras de dentes brancos e perfeitos, ela aceitou o convite e se colocou entre os braços de seu anfitrião. O som da valsa fluiu dentre os instrumentos de corda, suave e arrebatador. Fiquei surpresa a ver como Leonora estava dançando e percebi que Dominic reagiu igualmente. Ela parecia hipnotizada pela música e flutuava muda nos braços de Kyle. Ele continuava com sua expressão entristecida, mas os olhos pareciam mais claros e brilhantes ao estudar o rosto de sua parceira. Algo estava acontecendo, era o que minha intuição insistia em dizer, mas eu não compreendia. Ao terminar a música, Kyle beijou respeitosamente a mão de Leonora e levou-a até Dominic.
- Eu não estou me sentindo muito bem Dominic. Vou para o hotel.
Leonora fez uma cara péssima e choramingou:
- Mas nós mal acabamos de chegar...
- Cale-se, Leonora! – ordenou, preocupado com o aspecto de Kyle. – O que está sentindo? Talvez precise ver um médico. Não parece realmente bem.
- Não se preocupe comigo, Dominic. É apenas uma indisposição. Podem continuar a se divertir. Fiquem até a hora que desejarem. Mandarei o motorista de volta para ficar a disposição de vocês.
- Tem certeza que ficará bem? – perguntou Dominic.
- Fique tranquilo, amigo. Amanhã nos falamos.
Voltou-se para a saída, sem olhar para mim o que me deixou mais incomodada.
Em menos de um minuto Leonora já esquecera do ocorrido, convidada para dançar por um dos jovens com quem estava flertando desde antes do início do baile.
- Dominic – sussurrei.
- Já sei. Pode ir atrás dele. Acho que Nathanael terá mais trabalho essa noite cuidando de Nora que você cuidando de mim.
- Quem disse a você que quero ir atrás dele? É uma sorte que tenha ido embora.
- Ariel... Eu já conheço você o suficiente para saber que ficou no mínimo inquieta com a atitude de Kyle. Cuide dele como cuidaria de mim. Ele não possui ninguém para protegê-lo.
- O quê? – fingi desconhecimento a respeito do que ele tentava sugerir e disfarcei a surpresa com o desprendimento de Dom emprestando seu anjo da guarda, eu, para outra pessoa. Como se isso fosse corriqueiro.
- Não sei bem por que, mas algo me diz que o problema não é só uma simples indisposição como ele quis aparentar.
- E você acha que é assim... Ir me emprestando para qualquer um?
- Ele não é qualquer um, Ariel, e você sabe disso muito bem.
- Está bem. Já que você insiste, eu vou atrás dele – Pelo menos Dom não precisava saber de minha resolução em seguir Kyle ante de seu pedido.
E assim foi. Materializei-me na suíte de Kyle, mas permaneci na minha forma célica, lembrando o que acontecera da última vez. Ele não estava ali. Fui até o terraço. Lá a enorme e alinhada figura, ainda vestindo seu caríssimo smoking, contemplava as luzes da cidade, enfrentando o frio de vários graus negativos. O que se passava em sua mente naquele instante? Fiquei admirando-o em silêncio.
- Veio me fazer companhia, Ariel? – sobressaltei-me com a voz rouca. Ele continuou em sua contemplação – Dominic a obrigou a vir?
- Ninguém me obriga a nada. Vim por vontade própria. Não nego que Dominic me fez um pedido para estar aqui, mas eu viria de qualquer jeito.
Levei um susto quando ele se virou, encarando-me. Parecia ter envelhecido uns dez anos.
- O que está acontecendo? Está doente?
- Por que quer saber? Logo não terá que se preocupar comigo. Ficará livre de minha figura asquerosa e descansará em saber que Dominic e sua irmã estão livres da péssima companhia que represento.
- O quê? O que está dizendo? – entrei em pânico ao imaginar que ele estava pensando em suicídio.
- Cansei de lutar contra o destino. Não quero prejudicar mais ninguém.
- Por que está falando assim? Que destino é esse contra o qual tem lutado? Prejudicar quem? Pare de se fazer de vítima e me explique.
- Sei que me odeia, Ariel. Não é suficiente saber que não estarei nesse mundo amanhã para contentar-se?
- Contentar-me? – Agora meu coração parecia um tambor sem controle em meu peito. Assumi minha forma humana e me aproximei dele. – Eu não o odeio, Kyle. Nem desejo o seu “desaparecimento”. – disse em tom mais ameno.
 - Os anjos também odeiam... Sei disso. Não precisa bancar a boazinha comigo... Há quase mil anos o seu Superior me transformou no que sou hoje. Depois Dele ter feito seu trabalho, tenho lutado para permanecer sobre a tênue linha que separa o Bem do Mal...
- O que quer dizer com isso? ....
- Ainda não percebeu o que sou, Ariel?
Eu não sabia o que dizer. Senti meu corpo tremer. Não conseguia articular palavra alguma. No fundo, temia o que viria a seguir. Então ele continuou.
- Cansei de viver no limiar entre duas espécies, sendo obrigado a seduzir para sobreviver. Hoje quando tive Leonora em meus braços conclui que não existe mais sentido em continuar vivendo dessa maneira. Dizem que a dor provocada pela falta de alimento até a desintegração total é terrível, mas não deve chegar aos pés do que tenho vivido nos últimos séculos
- Eu não estou entendendo... – A mágoa e o tormento na voz daquele homem, que até então parecia tão forte e imune às emoções humanas, demonstrava uma enorme desilusão e uma repentina fragilidade, que fizeram meu coração bater mais rápido. Só conseguia pensar em descobrir  uma maneira de ajudá-lo.
- Estou falando da maldição que o Seu Divino Superior lançou sobre mim e que me tornou o que sou. Isso! – E mostrou os caninos que subitamente alongaram-se mostrando a sua legítima casta. Retrocedi alguns passos, horrorizada com a revelação, mas logo o horror transformou-se em pena e a vontade de ampará-lo voltou imperiosa.
- Não tema, Ariel. Não pretendo lhe fazer mal. Não o farei a mais ninguém. – Rugas tomavam conta de seu rosto bonito e másculo e a dor era visível em seus gestos e em sua postura.
- Não tenho medo. Só não posso deixá-lo ficar assim... Você precisa de sangue e isso é evidente... – Pensei alguns instantes sobre minhas próximas palavras e terminei por dizê-las sem vacilo – Alimente-se de mim.
Os olhos de Kyle brilharam ao ouvir aquela declaração.
- A maldição diz que eu só posso beber de mulheres seduzidas por mim. Até nisso eles foram cruéis. Preciso cativá-las, mesmo não as querendo, possuí-las e só então beber de seu sangue. Como vê, não pode me alimentar, minha cara, já que me odeia e jamais teria qualquer sentimento por mim que não fosse nojo. Mas não se preocupe, pois minha decisão foi tomada. Diga a Dominic que o determinei como meu herdeiro, já que não possuo ninguém para quem deixar meus bens terrenos.
- Olhe, já estou ficando cansada dessa conversa. Vamos sair desse frio e voltar para dentro. Não me agrada a ideia de ver qualquer pessoa morrendo de inanição na minha frente... Muito menos um idoso como você. – Minha garganta estava seca e com muito custo consegui fazer alguma ironia da situação em que nos encontrávamos. Um sentimento totalmente imprevisto tomava conta de mim. Algo que jamais esperei sentir por alguém... Eu descobria que aquele homem, ou vampiro que fosse, era mais importante do que jamais imaginara. Eu não o odiava. Eu o... amava. – Nem pense em sair desse mundo, senhor Kyle Sinclair. Venha! – Acerquei-me e o circundei com minhas asas, fechando-as sobre ele de maneira a desmaterializá-lo juntamente comigo. Tomamos forma no andar abaixo.
Ajudei-o a deitar na cama. Ele estava ofegante, mas antes que me afastasse, sua mão tocou meu rosto.
- Por que está fazendo isso? – perguntou ele com súbita ternura.
- Já disse que não gosto de ver ninguém morrer na minha frente. – respondi desviando o rosto. Não queria que ele percebesse meus sentimentos por ele. Além disso, eu precisava agir rapidamente para salvá-lo. Tentei forçá-lo a cravar os dentes em meu punho, mas ele já não tinha forças para tal, além de parecer resistente. Ele queria morrer!
Corri ao banheiro e peguei um dos copos de vidro que lá estavam e o bati com força no mármore da bancada, estilhaçando-o. Com um dos cacos, fiz um corte profundo em meu punho e voltei ao quarto. Coloquei o pulso sangrante junto a sua boca.
- Beba, por favor...  Beba.
Ele sorriu tristemente, balançando a cabeça.
- Não vai adiantar, meu bem. Você nem ao menos gosta de mim.
- Experimente... Por favor. – implorei mais uma vez, sentindo lágrimas turvarem meus olhos. Não saberia dizer se foi o tom de desespero em minha voz ou se meu choro, mas ele cedeu ao meu pedido e passou a sugar meu pulso. A princípio debilmente, mas depois, à medida que suas forças retornavam, passou a sugar com força, sem tirar os olhos dos meus, enlaçando-me com o profundo verde de seus olhos. Era nítida a melhora dele. Todo o processo de envelhecimento rapidamente retrocedeu e todo o viço de antes retornou. Ao contrário de mim, que pouco a pouco fui enfraquecendo enquanto uma irresistível e agradável sonolência foi tomando conta de minha consciência.

- Ariel... Ariel... Fale comigo, por favor – Sua voz parecia vir de muito longe. Meu corpo pareceu flutuar por um momento. Num esforço para romper o torpor vi que Kyle havia me deitado em sua cama e me olhava num misto de preocupação e... desejo. Sentia seus dedos acariciando as raízes de meus cabelos e o contorno de meu rosto. A sensação era tão boa como um voo sobre os jardins do Éden.
- Você está bem? – disse com a voz enfraquecida.
- Sim... Graças a você. – respondeu ele sentando-se em uma cadeira que acabara de colocar ao lado da cama.
- Vai parar de pensar naquela bobagem de desaparecer e me contar sobre a maldita maldição da qual me falou a pouco?
- Este linguajar não é apropriado para uma boa anja como você. – comentou com um meio sorriso, segurando minha mão.
- Não sei mais o que é apropriado ou não. Só sei que quero conhecê-lo melhor e desvendar os mistérios que me trouxeram até aqui.
- Tem certeza que quer ouvir minha história? Ela é bastante longa e você ainda está muito fraca.
- Então essa é a hora exata para me contar.
- Pois bem... Já que insiste.


(continua...)

Olá! Parece que finalmente o nosso charmoso vampiro vai revelar o seu segredo para a nossa confusa Ariel. Gostaram? Na próxima sexta teremos mais...rsrsrs.
Agradeço mais uma vez às minhas queridas top comentaristas, Nadja e Léia, por seus comentários aqui no blog. Igualmente agradeço aos amigos César Farias, Carolina Lopes, Junior Menezes, RaphaelaFrancilangela, que tão carinhosamente deixaram seu comentário lá no site da Aped Editora. 
Muito obrigada, mais uma vez, a todos vocês! 
Até a próxima sexta!Beijos!

sexta-feira, 18 de maio de 2012

O Vampiro de Edimburgo - Capítulo VIII

by Kodama e Fantin

Depois de mais de quatro horas dentro do jato particular de Sinclair, finalmente estávamos na cidade natal de Franz Kafka. A BMW X5 blindada atravessava uma das pontes de pedra sobre o Rio Vltava de onde se descortinava o monumental Castelo de Praga. Seguimos para o centro onde ficaríamos hospedados num dos hotéis mais caros e requintados da cidade.                                     
Sinclair parecia desconfortável com a tagarelice de Leonora, que se mostrava  totalmente deslumbrada. Também pudera. Ela nunca tivera a oportunidade de viajar. Eu ainda fizera algumas viagens à Londres a procura de emprego ou de reportagens, mas ela jamais saíra de Edimburgo. Bem, estava esquecendo sua visita a Glasgow. Um passeio de dois dias com o colégio, no último ano do ensino fundamental. Nossos pais eram rígidos quanto a saídas sem a família, além do que, o dinheiro nunca fora abundante. O trabalho de papai como pastor nos permitia viver com algum conforto, mas sem desperdícios. A visão de mundo que o milionário Kyle Sinclair estava nos proporcionando era algo além de nossa imaginação. Mais do que o medo de ver Leonora ser seduzida romanticamente por ele, era o medo de vê-la aliciada pelo poder e pelas riquezas. E ela era muito jovem, sem uma mãe para lhe dar conselhos... Muitos poderiam me chamar de fracassado ou pessimista, mas eu preferia ter os pés no chão. A não ser por uma sorte grande, como ganhar uma loteria ou realizar um casamento rico, Leonora e eu jamais poderíamos, um dia, ter um milésimo do que Sinclair nos deixava vislumbrar. Logo seria imprescindível uma conversa com ela, para dar-lhe a verdadeira noção da realidade. Como? Ainda não tinha certeza de por onde começar. Contava com a  inferência de Natanael nessa tarefa. Quanto a Ariel, nunca a tinha sentido tão agitada quanto nesta viagem. Ela tinha uma aversão quase patológica a Sinclair. A meu ver, exagerada demais. Se ela fosse humana, eu diria que estava terrivelmente atraída por ele, pois era o que normalmente acontecia com a maioria das mulheres que cruzavam aquele homem. E eu ainda não conseguira falar com Yesalel. Tentava não pensar nela, mas quando o silêncio pesava ao meu redor, sua imagem e sua voz agitavam meu coração e a necessidade de estar perto dela apertava o meu peito quase ao ponto de me sufocar. Ainda tinha esperanças de achar uma maneira de ficarmos juntos. Sei que teríamos que lutar contra forças poderosas e divinas, mas tinha que haver alguma solução para nós.
 Leonora quase surtou quando entrou na suíte de trinta e cinco metros quadrados onde ficaria sozinha durante aqueles três dias de estadia em Praga. Juntamente com ela, nossos protetores Natanael e Ariel ficaram extremamente aflitos. O primeiro já fora convencido pela segunda que Sinclair era o Mal em pessoa e que provavelmente estava apenas aguardando o momento oportuno para seduzir completamente minha irmã. Talvez eles tivessem razão, mas em meu íntimo não acreditava que ele tivesse coragem de fazer isso. Se meus instintos e minhas observações estivessem certos, juraria que uma boa dose de nobreza havia no homem que escondia um provável passado sofrido e solitário. Não poderia dizer exatamente de onde eu tirava esta certeza, mas eu a possuía desde o nosso primeiro encontro.
 

 
A “fome” começara a me atordoar. Não poderia esperar muito mais para me alimentar. Teria que ser naquela noite depois do baile... Alguma das convidadas... Talvez... Não. Leonora não. Por sorte consegui convencê-la a ficar no hotel e não participar dos discursos de inauguração do banco. Disse que seria muito chato e que ela certamente ficaria entediada. Um motorista a levaria diretamente ao baile às 22 horas.  Ela estava me enlouquecendo com suas criancices e o tagarelar incessante. Confiava na proteção dada por seu anjo arrogante e na palavra de Kolchak, quando me deu um mês para pensar. Por isso não me preocupava em demasia com sua segurança. Essa viagem também serviu para que eu chegasse a conclusão de que a semelhança física não era suficiente para apaziguar minhas lembranças de Cath ou voltar a um passado que eu já devia ter esquecido. Além disso, tinha aquela voz que me irritava profundamente. Muito diferente de Ariel, que tinha uma voz melodiosa, como só os anjos podiam ter. Mesmo quando irritada a voz permanecia como uma carícia em meus ouvidos... Por que diabos eu me lembrava dela a todo instante? Alguém que apenas nutria ódio por mim e desconfiava de todos os meus movimentos? Seu olhar, capaz de censurar e soltar fagulhas de raiva, mas ao mesmo tempo doce e misterioso quando estava distraída, e que me seguia onde quer que eu fosse, tentando ler meus pensamentos, adivinhar meus próximos passos... Tudo isso no intuito de defender não só ao seu protegido, mas também a Leonora, como se essa não possuísse seu próprio protetor, aquele anjo metido à besta, com pose de Arcanjo, que não passava de um simples domínio... Que gosto teria o sangue de Ariel? Em sua forma humana eu poderia prová-la... Não seria nada desagradável beijar aquele longo e alvo pescoço, sentir o perfume de seus cabelos, contornar suas belas e delgadas formas com as mãos e, finalmente... Precisava me concentrar em achar alguém que me alimentasse e não ficar perdendo tempo com pensamentos inúteis como esses. No entanto, a visita de Kolchak ao meu escritório, às vésperas da viagem, fizera renascer em mim a velha dúvida quanto a validade de levar uma existência vazia como a minha... A ameaça de morte pairando sobre a cabeça daqueles inocentes, imposta por aquele demônio, pesava em minha consciência. Consciência essa que já deveria ter sido esquecida há muitos séculos atrás, mas que ainda me perseguia... Seria muito mais fácil não tê-la... Sem escolhas, sem culpas, sem arrependimentos, sem dor... Acima do Bem e do Mal e sua peleja incessante, num jogo onde quem alicia mais almas sai ganhando... O melhor era tomar um banho e me vestir, pois logo mais teria início a solenidade de inauguração da nova filial do Banco Sinclair.
 

Dom estava elegantíssimo com o smoking, que ele fizera questão de alugar em Edimburgo. Não aceitara o oferecimento de Kyle de presenteá-lo com o traje, assim como fizera com Leonora. Eu notara um brilho de aprovação no olhar do banqueiro quando aceitou a recusa de Dom. Ou teria sido só uma impressão? Não fossem minhas desconfianças, eu diria que Kyle realmente gostava de Dom e sabia que isso era retribuído genuinamente. Em certos momentos ele era extremamente cativante. Eu o observara durante a escolha do vestido de Leonora. Sua paciência havia sido posta a prova, pois a menina não era fácil. Notei as vezes em que ele se controlou para não forçar uma escolha mais rápida, as vezes em que a olhou encantado, seguido pelos momentos em que queria estrangulá-la Só uma observadora atenta como eu notaria aquelas mudanças de humor refletido na nuance dos tons de verde dos seus olhos. Tinha tido a oportunidade de notar como eles ficavam mais escuros quando estava aborrecido ou excitado com alguma coisa ou pessoa, ou mais claros quando se divertia com algum fato inusitado... Como quando olhava para mim durante meus discursos de censura a ele... Um olhar que desarmaria qualquer mulher... Mas não um anjo como eu. Não! Eu não me deixaria encantar por aqueles olhos verdes ou por sua aparência máscula, viril, que fazia lembrar um daqueles bravos guerreiros antigos. Ou até um Anjo Guerreiro... Que bobagem! O que eu estava dizendo? Não podia perder minha noção de perigo com aquele homem. Ele usava de seu carisma exatamente para confundir a todos sobre a sua real natureza maligna. Eu não sucumbiria a ele, em hipótese alguma. Além do mais, o interesse dele era claramente sobre Leonora. Apesar de tudo, ele parecia fascinado por ela.
Dom finalmente ficou pronto e com um triste sorriso nos lábios se olhava no espelho.
- Será que Yesalel ia gostar de me ver assim?
- Você está lindo e muito elegante, Dom – disse a voz que ele ouvia desde o seu nascimento.
- Yesalel! – virou-se para certificar-se que era mesmo ela que estava ali a elogiá-lo.
- Yesalel! – exclamei ainda mais surpresa que Dom – Você está se arriscando muito vindo aqui.
- Não resisti – confessou, já correndo para os braços de Dom, que estavam abertos a sua espera.
- Meu amor! Já não aguentava mais de saudades.
Percebi que estava sobrando e fui dar uma volta pelas redondezas. A imagem de Kyle veio a minha mente num relance. A suíte dele ficava em uma das torres do hotel, no último andar, de onde a vista devia ser impressionante. Pensei em fazer uma visita camuflada. Sabia que era perigoso caso ele me descobrisse a bisbilhotar, mas não custava tentar. Em frente à suíte assumi minha forma humana e coloquei o ouvido colado à porta como uma delinquente a espreita de sua vítima. Não consegui distinguir barulho algum e fiquei esperançosa que ele houvesse saído. Poderia dar uma olhada em suas coisas e talvez descobrir algo incriminador. Com um leve toque de meus dedos sobre a fechadura desmagnetizei-a e ela se abriu revelando o interior do amplo quarto. Encontrava-se na penumbra e muito silencioso. Com todo o cuidado entrei e fechei a porta atrás de mim. Encontrei-me numa antessala imensa, com um confortável conjunto de estofados e uma pequena e elegante mesa para café. Logo adiante pude vislumbrar a cama kingsize voltada para o janelão com vista para os telhados do centro histórico e o magnífico Castelo de Praga. Deste salão, uma escada helicoidal com degraus e corrimão de madeira levava ao terraço. Então, ouvi o barulho de água corrente vindo de onde deveria ser o banheiro. Curiosa, me aproximei, passando pelo closet, onde se podia ver os elegantes ternos dele, e espiei. Uma nuvem de vapor inundava o local. Estremeci ao ver Kyle completamente nu sob o jato de água. Não que eu nunca houvesse visto um homem sem suas vestes, pois na minha profissão não podíamos ter esse tipo de pudor, mas ver aquele, especificamente, deixou minha circulação fora de ordem e um calor inesperado subiu até meu rosto. O pior é que eu não conseguia tirar os olhos daquele corpo de guerreiro. A água açoitava as costas largas e descia sem reservas pelo dorso, chegando às nádegas firmes e às coxas musculosas. Quando a respiração quase me faltava, ele se virou. Lembrei da figura de Davi, esculpida por Michelangelo, a não ser pelo detalhe que se sobressaía no púbis e que devia ser três vezes maior que o original da bela escultura de mármore. Pobre Davi... Quando voltei a olhar seu rosto, parcialmente encoberto pelos cabelos escuros e molhados, pensei ter visto um sorriso malicioso. Assustada com minhas próprias emoções, fugi temerosa que ele pudesse ter me visto. Ainda com a respiração ofegante, fiquei encostada na parede próxima à escada. Olhando a espiral que ia em direção ao telhado do hotel, não resisti. Imaginei que a vista e o ar fresco pudessem fazer retornar mais facilmente meu bom senso. Olhei para a porta do quarto de banho e, como não notasse qualquer indício de que ele estava terminando seu banho, subi os degraus calmamente. Deparei-me com uma vista panorâmica da velha Praga,  àquela hora toda iluminada. Como que hipnotizada, fui até a porta que ligava à área externa da torre e recebi uma restauradora lufada de ar enregelado em minha face. Andei em torno do perímetro do terraço apreciando o lindo espetáculo da cidade antiga iluminada. Encantada com a beleza do Castelo, ao longe, e suas majestosas torres encravadas no céu estrelado, quase esqueci onde estava.
- Apreciando a vista ou aguardando para bisbilhotar um pouco mais? – assustou-me a voz grave e rouca atrás de mim.
Tentei a desmaterialização, mas o medo paralisou minhas habilidades. Tentei fugir, mas dois braços hercúleos rodearam meu corpo e me obrigaram a ficar de frente para o hóspede da “Tower Suite”. Minha voz ficou perdida entre a garganta e a boca, deixando os lábios entreabertos na esperança de poder falar algo em minha defesa. Ele ainda estava nu, mas não apresentava o mínimo traço de tremor de frio. Um humano comum que tivesse acabado de sair do banho quente como ele, provavelmente já teria apresentado uma parada cardíaca devido ao tremendo choque térmico.
- O que a faz pensar que pode entrar dessa maneira no quarto dos outros e sair impune?
Seus olhos verdes pareciam flamejar ao me fitar com raiva e os braços pareciam querer esmagar-me contra seu peito. O pior de tudo era a sensação de calor e segurança que tomava conta de meu corpo e que eu desejaria negar. Apesar do medo, eu estava gostando daquele contato íntimo! Quase desmaiei ao sentir uma parte da anatomia de Kyle pressionado meu ventre. Ele estava excitado! Comecei a me debater, mas só conseguia que ele estreitasse mais o laço. Ele parecia estar se divertindo com minha luta inútil.
- Não vai nem tentar dar uma desculpa sobre a sua visita sem ser convidada aos meus aposentos?
- Eu não consigo nem respirar, quanto mais falar ou pensar numa boa desculpa – reclamei com a voz entrecortada.
Ele riu e afrouxou um pouco o abraço. Suas mãos começaram a deslizar sobre meu corpo, delineando-me, palpando minhas formas, enquanto o mundo ao meu redor parecia rodar. O que antes refletia raiva se transformou em algo que eu não saberia definir. Sob a palma de minha mão senti a sua respiração acelerar enquanto seu rosto se aproximava do meu. Quando seus lábios tocaram minha boca senti uma lassidão tomar conta de meu ser. Nunca experimentara tais sensações. Não era certo sentir aquilo...
- Pare! O que pensa que está fazendo? – gritei, ao conseguir me afastar daquela boca lasciva, onde tive a ligeira impressão de ver os caninos um pouco mais salientes que o normal.
- Estou cobrando o ágio por ter invadido a minha privacidade – respondeu com maior rouquidão.
- Não basta apenas pedir desculpas? – sussurrei.
-Não. Principalmente quando não existe motivo para essa invasão – explicou continuando a me abraçar – Reconheça que estava xeretando onde não devia.
- Está bem... Eu reconheço. Posso ir embora agora? – pedi – Não quero ser responsável por você pegar uma pneumonia.
Ele pareceu se dar conta do estado em que estava e me soltou gargalhando.
- Minha cara Ariel, fico comovido com sua preocupação – falou ainda rindo, para logo em seguida tornar-se sério – Agora, suma daqui, antes que eu não me responsabilize por meus atos.
A expressão raivosa voltara e, tentando não pensar em qual seriam os atos que poderiam vir a seguir, consegui me desmaterializar e voltar à suíte de Dom.
Por sorte Yesalel já tinha saído e Dom se encontrava sentado no sofá da suíte com o olhar vazio admirando a parede a sua frente como se ela fosse uma obra de arte.
- Dom... Você está bem?
- Se ficar bem é sentir a alma amputada e o coração estilhaçado... É. Estou ótimo.
- Nossa, Dom. Também não é para tanto.
- Você já se apaixonou, Ariel? – perguntou voltando o olhar, agora interrogativo, para mim.
- Nós não temos muito tempo para perder com essas bobagens. Temos nossas horas totalmente ocupadas cuidando de humanos tolos como você. – falei, apesar de não estar exatamente convicta com minha resposta. Eu pensava assim... Até agora.
- É bom ser tolo de vez em quando, Ariel.
- Para ficar sofrendo do jeito que estou vendo você sofrer agora? Não. Muito obrigada. Além do mais, esse tipo de relação não faz parte dos planos das camadas superiores – conclui apontando o queixo para o teto do apartamento.
- Yesalel não pensa como você.
- Ela perdeu o juízo.
- Deve ser muito bom ser tão controlada assim como você.
Ele não diria isso se soubesse como me sentira momentos antes nos braços de Kyle. Permaneci quieta para evitar que aquela conversa se estendesse além da minha própria compreensão.
- Vou até o quarto de Leonora para ver se ela precisa de ajuda – resolveu falar após alguns minutos de carregado silêncio.
Fui atrás dele.
Leonora estava belíssima, apesar de um pouco atrapalhada com o fecho do vestido às suas costas. Assim que viu o irmão chegar, foi logo pedindo ajuda.
- Que bom que chegou, Dom. Pode me ajudar a fechar isso aqui?
- Claro... Você está linda, Nora. Mamãe ficaria orgulhosa de vê-la assim.
- Acha mesmo? – Podia-se notar a ansiedade saltitante da jovem. – Dom, será que não posso ir com vocês agora? Não sei se vou aguentar ficar esperando até chegar o carro que vai me levar ao baile.
- O Kyle foi bem específico. Nos veremos apenas depois da inauguração.
- Por quê? – perguntou aflita com a voz irritantemente pueril.
- Porque o nosso anfitrião, aquele que está pagando todas as suas, as nossas despesas, assim determinou. E não serei eu que vou discutir com ele.
- Está bem, está bem. Só estou com medo de chegar lá sozinha.
- Não se preocupe. Você estará bem acompanhada – disse Dominic olhando diretamente para Nathanael que se encontrava em seu posto logo atrás de Leonora. Em resposta, o anjo abriu um largo sorriso.
- Como você sabe? Conhece o motorista que vai me levar? – perguntou ela obviamente alheia à presença de seu protetor.
- Não... Mas tenho certeza que é eficiente e vai levá-la em segurança até o baile. Kyle não contrataria ninguém que não fosse o melhor para conduzi-la. Não concorda?
- É, concordo... – falou com preocupante ar sonhador.
- Vamos descendo. Não quero deixar Kyle esperando – falou referindo-se a companhia de Ariel, sem pensar que deixaria a irmã confusa.
- Vamos? Vou descer com você agora? – alegrou-se Leonora.
- Não... É maneira de dizer... – atrapalhou-se, reconhecendo sua falha – Você fica aqui... – Virou-se de frente para ela, quase em posição de sentido e perguntou para distraí-la – Estou bem?
- Eu diria que o defunto era um pouco mais gordo que você... – disse aborrecida – Estou brincando, maninho. – corrigiu ao ver a boca de Dom murchar – Você está lindão! – e estalou um beijo em sua bochecha.
- Até mais, maninha. Juízo. Só desça quando for a hora combinada.
- Já sei, já sei. Tchau!
Definitivamente as maneiras de Leonora não condiziam com seu aspecto exterior, especialmente naquela noite, pensei. Afinal, o que esperar de uma garota de dezessete anos?

(continua...)

Oi, meus amores! Gostaram do capítulo?
Acho que todos já souberam da minha felicidade essa semana ao saber que fui a escolhida entre 38 autores nacionais na promoção da Editora APED. Quero deixar aqui o meu agradecimento a eles, na figura da sua diretora e editora-chefe, a Zélia de Oliveira, que me deu pessoalmente a notícia no último dia 15.
Também quero agradecer, como sempre, às minhas queridas comentaristas e anjinhos da guarda, Nadja e Leia, por suas palavras no último post.
Um beijo e um amplo abraço a todos que me enviaram as felicitações através de emails ou de mensagens no FB.
MUITO OBRIGADA por me acompanharem nessa trajetória de anos!

sexta-feira, 11 de maio de 2012

O Vampiro de Edimburgo - Capítulo VII

by Kodama e Fantin

Foi difícil para Leonora pegar no sono naquela noite tal a excitação com as compras feitas durante a tarde ao lado de Sinclair. Jamais se sentira tão importante e adulta como quando adentrou em uma das mais conhecidas e caras lojas de Edimburgo. Atendida como uma princesa da mais alta estirpe, depois de experimentar a maioria dos vestidos e procurar a aprovação do irmão e de seu benfeitor, acabou por escolher um traje de tafetá de seda, na cor azul turquesa, que combinava perfeitamente com sua pele clara, cabelos ruivos e olhos azuis. Tive dificuldade em identificar a causa do mal estar que me atingiu ao notar o extasiamento indisfarçado no olhar de Sinclair ao ver a garota no deslumbrante vestido sem alças, que realçava seus seios pequenos e arredondados e sua cintura fina. Certamente o motivo era minha preocupação com a inocente Leonora e minhas suspeitas quanto às verdadeiras intenções libidinosas daquele homem em relação a ela.
Enquanto Nathanael velava o sono da garota, tentando induzi-la, conforme me dissera que tentaria,  a sonhar com um jovem de sua turma, pelo qual estava interessada, Dominic escrevia seu artigo, falando a respeito das andanças de Kyle Sinclair e fazendo planos sobre a futura viagem. Já ouvira falar muito sobre a capital da República Tcheca e estava entusiasmadíssimo com a possibilidade de conhecê-la, mesmo que estivesse a trabalho. Mergulhada em minhas preocupações, andava de um lado para o outro junto a Dominic, a procura de respostas para o meu quebra-cabeça.
- Você quer parar de andar “prá lá e prá cá”, por favor? Está atrapalhando o meu raciocínio, Ariel.
- Quem manda você poder me ver e ouvir.
- Infelizmente é algo que eu não posso controlar. Quem dera pudesse fazê-lo numa hora dessas – finalizou irritado.
- Por que você não fala desse jeito com o seu amado senhor Sinclair? Só dá uma de mandão comigo.
Ele soltou um suspiro profundo e permaneceu calado, pois não queria continuar aquela discussão.
Antes que pudesse iniciar um sermão quanto ao seu comportamento tímido diante dos desmandos de Sinclair, ouvi o chamado telepático de Yesalel.
- Yesalel! – exclamou Dominic olhando ao seu redor, na esperança de vê-la. – O que ela quer com você, Ariel? Por que não me disse que tinha contato com ela. Eu preciso vê-la, nem que seja por alguns minutos.
-Você também pode ouvir mensagens telepáticas? – exclamei surpresa com a invasão de privacidade.
- Desculpe... Apenas senti a presença dela de alguma maneira... Eu preciso vê-la, falar com ela...Por favor...
- Sinto muito, mas não sei se é possível.
- Por favor... – suplicou com tal olhar de aflição que me emocionou, pois eu tinha alguma ideia da miséria emocional em que ele se encontrava pela ausência de Yesael até aquele momento.
Podia sentir a falta que ela lhe fazia e o amor intenso que trazia preso em seu coração. Desde que ela fora substituída por mim, eles não tinham tido oportunidade de encontrar-se.
- Vou ver o que posso fazer. Por enquanto o que posso lhe dizer, e que eu não devia, é que ela também sente muito a sua falta, Dom.
Desmaterializei-me para evitar a súplica do apaixonado e encontrar a tristeza estampada na face de Yesalel.
- O que há com vocês dois? Têm que parar com isso. Sabem que não é permitida a união de anjos e humanos.
- Em certos casos especiais, sim. – replicou Yesalel.
- Está bem... Já ouvi falar sobre isso, mas são casos muito especiais.  Não o caso de uma guardiã e seu protegido. Isso é muita piração. Era óbvio que ele se apaixonaria por você se a conhecesse... E ele a conheceu só por causa do poder que tem de ser capaz de ver os anjos.
- E você tem ideia de porque ele tem essa capacidade e quem são os “escolhidos”?
- Você descobriu alguma coisa, Yesalel?
- Encontrei o pai do Dom.
- O quê? Como ? Me conta tudo!
- Ele está em um campo de refugiados na Somália numa missão de evangelização. Ele só se dispôs a falar comigo quando eu disse que tinha sido excluída como protetora de seu filho. Aliás, ele não é de muitas palavras, a não ser quando fala do Senhor.
- O quê ele disse, Yesalel? Não me mate de curiosidade!
- Quis saber como estavam os filhos e disse que só se engajara naquela missão porque sabia que eles ficariam protegidos pelo Divino e...
- E??
- Empalideceu quando falei sobre a amizade de Dominic com Sinclair.
- Então ele o conhece?
- Parece que sim, mas não entrou em detalhes. Apenas pediu que continuássemos a observá-lo.
- E ele explicou porque eles podem nos ver? E que história é essa de Escolhido e missão especial?
- Está preparada para ouvir? Não quer se sentar?
- Pelo amor do Senhor, Yesalel! Fala logo!
- O pai de Dom  é um Anjo Caído.
- C-como? Está brincando? – Quem ficara caído com aquela revelação fora o meu queixo.
- Jamais brincaria com uma coisa dessas.
- Como você nunca soube antes, convivendo com eles?
- Eu sabia...
- Mas por que não me falou isso antes?... – perguntei ainda estupefata.
- Imaginei que você ainda não estava preparada, já que essa informação não lhe foi dada por Samuel.
- E por que contou agora?
- Decidi fazer isso depois da conversa que tive com Damian. Nunca tínhamos tocado nesse assunto. Você sabe como isso é meio tabu na esfera superior e ele só tocou no assunto depois que eu contei sobre Sinclair. Existe alguma relação entre os dois, mas ele não quis falar sobre isso. Acha que pode prejudicar sua missão e a sua salvação.
Os Anjos Caídos eram rebeldes, expulsos dos céus por irem contra o poder do Senhor. Alguns, arrependidos, aceitaram viver na Terra, junto aos humanos, praticando boas ações, afim de que no dia do Juízo Final, recebessem a libertação e voltassem à companhia do Criador. Eu já ouvira falar sobre eles muito discretamente, pois o assunto costumava ser evitado na dimensão celestial.
- E o que mais ele disse?
- Quis informações a seu respeito e pediu para lhe dar um recado.
- Imagino qual... Para ter cuidado com Sinclair...
- Não... Com nosso Chefe...






Terminara mais uma manhã de trabalho em meu escritório. O representante da firma de advogados que representava o Sinclair Bank of Scotland acabara de sair. Esperava que minha secretária já tivesse resolvido todos os pormenores de minha ida e de meus convidados para Praga.
Levantei-me, vesti o paletó e apertei o interruptor do interfone.
- Marian, venha até aqui, por favor.
- Ehr...Senhor... – a voz de minha secretária soou insegura na sala ao lado.
- Algum problema?
- Tem um homem aqui...
- Alguém agendado que você se esqueceu de me avisar, Marian? – interroguei com alguma irritação, tentando me controlar, pois ela raramente cometia enganos.
- É uma visita de última hora, senhor. Ele insiste em lhe falar... Seu nome é Kolchak. Senhor Kolchak.

Kolchak, quando o encontrei na última vez...



Sua voz agora soava estranha, como se falasse mecanicamente. E eu sabia qual o motivo disso... E como.
- Pode mandá-lo entrar, por favor.
Voltei a sentar e fixei meu olhar na porta que se abria lentamente. Uma entrada teatral. Era bem o estilo de Kolchak.
Ele mudara pouco. Usava gel para manter os cabelos negros e lisos para trás, o que  evidenciava as entradas laterais na testa ampla. Os olhos frios e amendoados, no rosto anguloso, de pele pálida, adornado por um nariz aquilino e um queixo redondo afilado por um cavanhaque a la Don Juan de Marco, que ele mantinha desde muito antes o ator Johnny Depp. Como sempre, muito elegante, trajando um Armani e sapatos Ferragamo, poderia se passar por um empresário de sucesso, o que não seria mentira, considerando o caos em que o mundo andava ultimamente. Com uma aparência como aquela certamente era muito mais fácil de conseguir adeptos do que com os  ultrapassados chifres na cabeça e os pés de bode. O Inferno evoluíra na questão de marketing também, afinal. Assim que a porta se fechou atrás dele, mostrou os dentes perfeitos e brancos e procurou a poltrona defronte a minha mesa, onde se sentou como se fosse um amigo e fosse bem vindo.
- Há quanto tempo, Sinclair? – saudou-me dando maior acento sobre meu nome. – Sentiu saudades?
- É... Estava sentindo falta de um palhaço para alegrar minha enfadonha vida.
O homem continuava com seu sorriso, como se não houvesse ouvido minha ofensa,  enquanto os olhos gélidos permeavam o ambiente ao seu redor.
- Vejo que continua próspero, Sinclair...
- Não tenho do que me queixar. – continuei sentado indolentemente a acompanhar seus movimentos e expressões. – Continua trabalhando como capacho de seu mestre?
O olhar de Kolchak endureceu apesar de seu sorriso paralítico.
- Já que tocou no assunto, vamos ao que interessa.
- Ótimo, pois tenho muito a fazer.
- Preparando sua viagem de lua de mel com a jovem Leonora?
Tentei manter-me inalterado, apesar do mal estar que senti ao ouvir o nome de Leonora pronunciado por aquela boca pútrida. Pelo menos eles não podiam ler meus pensamentos.
- Falei alguma inverdade? – continuou, diante do meu silencio.
- É melhor dizer logo a que veio e terminarmos logo com isso.
- Como quiser... – Levantou-se da poltrona e começou a andar pela sala como se estivesse admirando os quadros expostos nas paredes. – Apesar de eu já ter aconselhado a destruí-lo, pois não vejo em que poderá nos ajudar, tenho uma nova proposta de meu superior ou "mestre", como você o denomina.
- Medo de concorrência, Kolchak?
Notei quando os punhos do demônio se fecharam, mas ele permaneceu tenso e calado.
- Está perdendo seu tempo, Kolchak. – continuei, divertindo-me com a reação dele. – Minha resposta continua sendo não. Quantos séculos e quantas vidas ainda tentarão levar  insistindo em me ver ao lado de vocês?
- Digamos que somos incansáveis. Infelizmente, meu "mestre", continua achando que você seria uma ótima aquisição em nosso empreendimento.
- Não me dou bem com o calor...
Kolchak gargalhou com a minha alusão.
- Continua espirituoso... – comentou quando parou de rir. – Posso garantir que evoluímos muito nestes séculos e que temos recantos bastante confortáveis e arejados em nossas “propriedades”. No entanto, nossa intenção é de que você permaneça aqui, levando a mesma vida que levou até agora. A única diferença é que estaria a nossa disposição.
- Pretendo continuar autônomo...
- Se eu fosse você pensaria melhor...
- Qual a ameaça dessa vez, Kolchak?
- Creio que você já deve imaginar. Lembra-se da última vez? Foi em Novembro de 1824, se não me engano... Você pensou que havia salvado seu amigo daquele incêndio, não é mesmo? E se eu dissesse que foi meu "mestre" que permitiu esse salvamento, pois ele não queria prejudicar futuras negociações.
- Poderia ser mais claro?
- Acredito que você não seja burro o suficiente para pensar  que Dominic MacTrevor e sua irmã foram parar na sua frente por mero acaso, pensou?
Comecei a gargalhar e notei a apreensão tomar conta de Kolchak, apesar de ele tentar disfarçar.
 - É essa a nova  proposta de vocês? Acreditam que me deixei enganar com a aparência de Leonora? Estão de brincadeira?
- Você seria capaz de perder mais uma vez a sua Cathela?
Ao ouvir aquele nome, lancei-me sobre Kolchak, em menos que um piscar de olhos, com a mão em garra sobre seu pescoço, dentes caninos afiados à mostra,  enquanto o comprimia contra a parede.
- Se eu o ouvir falar  mais uma vez o nome dela, prometo fazer um estrago bem grande nessa sua aparência pretensamente requintada. Posso não poder matá-lo, mas você não ficaria muito bonito por um bom tempo. – ameacei num rosnado.
- Não lembrava que você fosse tão sensível... – disse com a voz rouca devido à constrição sobre sua laringe.
Aos poucos fui afrouxando a compressão e liberando-o.
- Assim está melhor... – disse massageando a área dolorida do pescoço. – Sabe que eu poderia me defender, não é mesmo, Sinclair? No entanto, estou aqui apenas como emissário de meu superior... A questão é a seguinte. Dominique e Leonora por sua adesão ao nosso exército. Tem exatamente um mês da Terra para decidir. Ao final desse período, voltarei a procurá-lo, esteja onde estiver... Foi um prazer revê-lo, Sinclair. – despediu-se sem maiores rodeios e  com aquele sorriso detestável nos lábios.
Desapareceu instantaneamente, no momento em que a porta abriu e Marian surgiu com olhar preocupado.
- Aconteceu alguma coisa, senhor Sinclair?  Devo chamar a segurança?
- Não se preocupe. Já está tudo sob controle...
Ela avaliou o ambiente de meu escritório com os olhos e voltou a perguntar.
- Onde está o seu visitante? O Senhor... – Com olhar  vago, parecia aflita por não encontrar ali o homem que introduzira minutos antes em minha sala.
- Ele já se foi, Marian.
- Mas esse barulho que eu ouvi?
- Foi apenas um dos quadros que quase caiu. Eu o segurei a tempo contra a parede. Foi apenas isso que você ouviu...
- Oh... Estranho...
- O que foi, Marian?
- Eu não o vi passar por mim... Tem certeza que ele saiu?
- Quer verificar o meu banheiro particular? – indaguei irritado pela insistência da secretária.
- Não, senhor... Imagine! Eu creio no senhor. Perdão pela minha intromissão.
Antes que ela saísse, chamei-a.
- Marian...
- Sim, senhor... Deseja alguma coisa?
Segurei-adelicadamente pelo ombro e a forcei a olhar para mim. Não era justo que a pobre coitada ficasse se atormentando com aquela visita, por isso esvaziei sua mente dos últimos vinte minutos.
- Não, Marian. Não preciso de mais nada, obrigado. Pode ir para o seu almoço.
Fiquei pensando no prazo dado por Kolchak e lembrei que dentro de exatamente um mês seria o aniversário da morte de Cathela. Há exatamente dez séculos ela fora assassinada. Teria isso alguma relação com o prazo de Kolchak? Provavelmente não. Era apenas uma coincidência.
Agora tinha certeza  que Leonora era apenas uma isca inocente, o que tornava ainda mais difícil o meu distanciamento do casal de irmãos. Não permitiria que nada de mal acontecesse a eles, mas também não entregaria minha alma para aqueles demônios.


(continua...)


Mais uma sexta que chega, mais um capítulo da história do nosso vampiro...
Antes de mais nada, gostaria de contar a voces que essa semana, mais uma vez, uma amiga muito querida provocou minhas emoções, encheu meu coração de alegria e elevou meu ego a alturas estratosféricas. A Nadja, um dos meus anjos da guarda(tenho vários se manifestando a toda hora...), me surpreendeu com um post que me deixou sem palavras e com lágrimas à solta, publicado no seu excelente Blog Sonhos e Sons. Não sei se mereço tanto, mas, que estou sorrindo até agora com tal homenagem, não há como negar. Falando de manifestações angelicais, na semana passada, a Léia, outra anjinha muito amada, já havia   me surpreendido me presenteando com uma página no Facebook para o livro O Corsário Apaixonado, a exemplo do que ela já tinha feito anteriormente com meus outros livros. Outra amiga, esta mais recente e igualmente celestial, é a doce Carolina Lopes, do Blog Cantinho da Carolina, que além de ter sido a responsável pela linda capa de O Corsário Apaixonado, na semana que passou me fez outras surpresas inesquecíveis. Presenteou-me com uma página para o Corsário, lá no Skoob, e fez marcadores lindos para o mesmo livro.   Coincidentemente, essa semana, eu havia lido uma frase sobre amizade e que reflete de alguma maneira o que estou sentindo:
                
                        "A melhor parte da vida de uma pessoa está em suas amizades"

Parece que ela foi dita por Abraham Lincoln, mas o que importa é a verdade contida nela.
O meu muito obrigada e um grande beijo a todos voces, minha(eu)s querida(o)s amiga(o)s!

sábado, 5 de maio de 2012

O Vampiro de Edimburgo - Capítulo VI

by Kodama e Fantin

Durante meu rápido deslocamento até o apartamento dos irmãos, uma sensação estranha me perseguiu. Não pude identificar o motivo, mas a causa... Sinclair! Aquele homem tinha alguma coisa muito... diferente. 
Dom estava tirando um cochilo em frente a TV. O rosto bonito estava tão relaxado que seus traços assemelhavam-se ao de um garotinho. A irmã raptada por um devorador de mulheres e ele dormindo. Aproximei-me cuidadosamente e bem perto do seu ouvido, gritei.
- Dominic! Acorda!!!
Ele despertou imediatamente, com um grande salto, merecedor de um prêmio olímpico, se estivesse concorrendo para tal.
- Droga, Ariel... Quer me matar de susto?! Você é meu anjo ou o quê?! – berrou ligeiramente irritado com minha risada.
- Dominic, apesar de ter adorado sua reação, agora não é o momento ideal para diversão. – Tentei voltar à seriedade tendo em vista o motivo de meu aparecimento, digamos assim, inesperado. – Sabe onde está Leonora?
- Na escola, acho... – ele conferiu as horas no relógio de pulso. – Bom, a essa hora, ela já deveria ter chegado em casa. 
Dirigi a ele um olhar de pura censura.
- Pois eu lhe digo onde ela está.  Almoçando com aquele seu amigo... Kyle Sinclair. Não me lembro de nenhum dos dois ter comentado tal encontro com você.
- Nem eu. Mas por que você está me contando isso?!
- Não acha estranho  uma garota da idade dela ser convidada para almoçar no castelo de um milionário solteiro? – frisei – Vamos lá, buscá-la, Dom. Agora!
 Dom ainda hesitou.
- Ariel, Sinclair é meu amigo... Ele não faria nada contra a Leonora.
- Acorda, Dominic!!! Que amigo, nada! Vocês só se conhecem há alguns dias e o cara já convida sua irmã menor de idade para almoçar sozinha com ele sem avisar antes! Ficou maluco? – gritei como se fosse uma mãe desesperada. – Ainda mais com a fama que ele tem com as mulheres!
Meu alerta pareceu ter funcionado, já que Dominic pegou a carteira e o capacete e correu porta a fora. Montou em sua scooter e foi até o castelo, onde eu já o esperava junto aos grandes portões de ferro. Sem dificuldade, consegui abri-los para permitir a passagem de Dominique. Acompanhei-o de perto, num voo baixo, até a entrada da mansão.
Um vento frio trouxe nuvens carregadas durante nosso deslocamento e uma garoa começou a cair assim que chegamos à imensa porta de madeira entalhada.
Dominic puxou a aldrava de bronze e um som cavernoso ecoou pelo interior da construção sombria.
- Adoro esse som... – revelou  ele.
- Affe! – reagi indignada. – Você admira até a campainha da porta desse infeliz, Dominic. Poupe-me!
A pesada porta de madeira, que parecia ser tão velha quanto Matusalém, se abriu com um rangido medonho e o mesmo homem que dirigia o carro do banqueiro nos atendeu.
- Pois não?... – A voz do homem era tão oca e cavernosa quanto o barulho da aldrava na porta de madeira. Meus pelos se arrepiaram.
- Angus... Boa tarde. Minha irmã está aqui?! 
O velho lançou um olhar vazio para Dominic e fez sinal para que ele entrasse.
- Por aqui, senhor MacTrevor. – E foi indicando o caminho para a sala de jantar, muito empertigado, magro e inexpugnável. Angus era, definitivamente, muito estranho. Mas, estranhamente, combinava com o castelo e seu proprietário...
                A sala de jantar era enorme. A grande mesa de madeira polida estava elegantemente posta para duas pessoas. A visão que nos proporcionava era similar ao velho clichê dos antigos filmes de terror.
                Sinclair ocupava a extremidade e Leonora estava sentada à sua direita, falando sem parar, como só as adolescentes são capazes de fazer. O homem apreciava uma taça de vinho, em silêncio, observando-a, aparentemente entediado com o monólogo. Sem querer, um risinho escapou dos meus lábios, mas me apressei em disfarçar com uma tossida seca. Dominic nem percebeu, mas o olhar do anfitrião foi rapidamente atraído para minha pessoa.
        Mantive minha postura de guardiã e segui Dominic para o interior do luxuoso ambiente.
- Dominic! Mas que surpresa agradável...
- Sei... – Não me contive. Dom me ignorou.
- Senhor Sinclair... – cumprimentaram-se com um aperto de mãos amigável e Dom foi beijar o rosto da irmã, que o observava aborrecida.
- Como me encontrou, Dom?!  Foi você quem o avisou, Kyle? – indagou Leonora tentando demonstrar intimidade.
- Ah... Não estava procurando por você, Nora. – chamou-a pelo apelido. – Só vim conversar com o senhor Sinclair, para a reportagem, sabe... Que coincidência encontrar você aqui... – Dominic tentando mentir era ainda pior do que dizendo a verdade.
- Preciso me desculpar com você, Dominic. Primeiro, gostaria que parasse de me chamar de Senhor Sinclair, como já lhe pedi antes. Chame-me apenas de Kyle.  Em segundo,  confesso que quando vi Leonora saindo da escola, não resisti, ofereci uma carona e acabei por convidá-la para o almoço, sem avisá-lo.
- Você me disse que o Dominic tinha pedido para me buscar. Seu mentiroso! – disse Leonora falsamente melindrada, com um sorrisinho de satisfação emergente dos lábios bem feitos.
- Não importa. Já que está aqui, almoce conosco! Angus trará mais um prato. – Sinclair convidou ao mesmo tempo em fazia um sinal para Angus que, por sua vez, continuava cravado ao chão ao lado da mesa. À ordem de seu amo, imediatamente pôs-se em movimento para cumprir o exigido.
- Não precisa... Ahn, obrigado. – Dom foi vencido pelo olhar hipnótico do anfitrião. Existe alguma coisa que esse homem não consiga?!, refleti. Um sorriso matreiro surgiu naquela face, que inadvertidamente encarei. Os olhos verdes lançaram faíscas na minha direção e eu quase desmaiei, pois ele deu a impressão de estar ouvindo meus pensamentos!
- Não pode ser... – murmurei. – Dom ouviu meu murmúrio e, mal havia se sentado, levantou-se novamente.
- Ah, Senhor... digo, Kyle... Acho que precisamos ir. – Notei sua confusão causada por meus pensamentos em voz alta e tentei ser mais “profissional”.
- Desculpe, Dom... Pode ficar. – sussurrei em seu ouvido. O coitado não sabia mais o que fazer, dividido entre o que ouvia, o que via e o que pensava que deveria fazer.
- Dominic... Não seja tolo. Sente-se e nos faça companhia. – O tom de voz de Sinclair não deixou margem para objeções. Angus trouxe louça e talheres e o serviu.
Acomodei-me em uma cadeira vazia, na minha forma etérea e fiquei quieta, apenas observando.
- Bom... Nesse caso... – resignou-se já se acomodando novamente na cadeira ao lado do anfitrião.
Dominic provou o vinho. Não sei se foi algum benefício da bebida, mas me surpreendi quando ele encarou seu anfitrião, resoluto.
– Olha, Kyle, sei que temos convivido muito tempo juntos, graças a sua permissão de poder acompanhá-lo para minha reportagem, mas gostaria de deixar claro que...Bem... Que não gostei da sua atitude para com a minha irmã. Eu sou o responsável por ela. Além do mais, ela é menor de idade e não fica bem ficar saindo por aí com homens adultos e experientes como você. – disse quase de um fôlego só.
“ Ahá!!! Por essa ele não esperava e, confesso, nem eu.”
 O poderoso senhor Sinclair sorriu e pousou sua taça, encarando seriamente meu tutelado. Minha empolgação cresceu. Abri minhas asas num gesto protetor.  O tempo pareceu parar.
- Claro. Devo-lhe desculpas, Dominic. Realmente não agi corretamente. Sinto muito. – E, sorriu tão encantadoramente, que Dominic retribuiu e Leonora suspirou. Fiz questão de demonstrar que não acreditei naquele pedido de desculpas, farfalhando minhas asas, antes de recolhê-las. – Gostaria que me perdoasse e que soubesse que fiz o convite à Leonora com a melhor das intenções.
“Você se acha muito esperto...”, pensei. Logo em seguida recebi uma olhadela de Sinclair que fez eriçar os pelos de minha nuca.
Dominic titubeou em sua postura e respondeu gaguejando.
- É- é óbvio que o desculpo. I- imagine.... Perdoe-me por sugerir algo diferente. Tenho certeza que suas intenções foram boas.
- Que bom que resolvemos esse mal entendido, Dominic – assentiu Sinclair com firmeza, seguindo gentilmente. – Agora, por que não apreciamos nosso almoço?!
Sem objeções dos presentes, com evidente relaxamento do clima tenso, todos voltaram a atenção aos pratos. Menos eu, que continuei vigilante ao lado de Dominic. A conversa foi reiniciada, mas não me ative a ela.
                Aquele homem era o único alvo de minha atenção. Seus olhares, por vezes irônicos, por vezes apenas divertidos, me prendiam. Ele possuía uma personalidade tão magnética que nenhum dos dois irmãos podia resistir.
Estavam encantados. E ele sabia. Só eu não me deixara encantar. “Ainda”, uma voz pareceu sussurrar em meus ouvidos.
- Dominic, aproveitando a sua visita, gostaria de convidá-lo para me acompanhar numa viagem a Praga. O meu banco vai inaugurar uma filial naquela cidade. Tem algum compromisso nesta sexta-feira? – falou ele, interrompendo a conversa fiada.
- Sexta-feira? – quase se engasgou com o pedaço de carne que estava mastigando – Não, óbvio que não.
- Então esteja preparado. Leve um smoking, pois teremos um jantar de gala comemorativo. Você conhece Praga?
- N-não. Nunca estive lá.
- Você vai gostar. É uma cidade belíssima e com uma vida noturna bem movimentada.
- Eu também quero ir – choramingou Leonora.
- De maneira alguma, Nora! – Dominique exclamou o mais discretamente possível.
- Como vou ficar sozinha? – perguntou melosa, piscando os olhos timidamente.
- Ora, você já sabe se cuidar sozinha. Não vive dizendo isso? É a sua oportunidade para verificar se isso é verdade.
- Seria um prazer se Leonora quisesse nos acompanhar – intrometeu-se Sinclair, demonstrando satisfação pela ideia oferecida pela irmã de Dominic.
 Nathanael, voltou a aparecer ao lado de Leonora.
- Viu, Dom? O Kyle está me convidando também. Já ouvi dizer que Praga se parece muito com Paris.
- Pode-se dizer que os arquitetos que as construíram se formaram na mesma escola – informou Sinclair.
- Não sei...
- Como não sabe, seu estúpido! Quer colocar a sua irmã na boca do lobo? – indignei-me com a dúvida de Dominic.
Diante daquela insinuação, Sinclair sorriu. Parecia encontrar prazer em me ver furiosa.
- Prometo que não há com que se preocupar. Afinal, vocês ficarão juntos o tempo todo e eu não sou o lobo dos irmãos Grimm – disse me olhando provocativamente.
- Combinei de ir a uma festa com a Meg e a Jane... – Leonora pensou alto, com ar de dúvida, pois subitamente lembrara o convite que suas amigas lhe tinham feito dias antes.  Entretanto, logo em seguida, encontrou uma desculpa esfarrapada para desprezar o convite das amigas. – Mas acho que um baile de gala deve ser muito mais “punk”.
Vi Nathanael soprar algumas palavras na mente de sua protegida.
- Ah... Mas  não tenho um vestido para uma festa dessas... Acho que não vou poder ir... – reconheceu tristonhamente. – Não posso ir a um baile de gala em jeans e camiseta.
- Isso não é problema. Hoje mesmo podemos providenciar um belo vestido a sua altura, minha querida – tranquilizou-a Sinclair.
- De maneira alguma...  – exclamou Dominic, quase ao mesmo tempo em que eu bufava minha contrariedade diante da ineficiência de Natanael para convencer Leonora a ficar – Não posso arcar com uma despesa desse tipo, Kyle.
- E quem disse que você vai ter qualquer despesa. Tudo correrá por minha conta e certamente Leonora será a dama mais linda nesta festa.
- Viu, Dom? O Kyle é um perfeito cavalheiro – disse alegremente – E merece um beijo – continuou, levantando de sua cadeira mais rapidamente que qualquer atitude de Nathanael para detê-la, e  jogando os braços em torno de um Kyle surpreso, sapecou-lhe um beijo no rosto.
Nathanael apenas fechou os olhos. Devia estar pensando que atitude tomar para conter os ímpetos de sua protegida desmiolada.
- Dominic MacTrevor! Diga não a este senhor ou não falo mais com você. – esbravejei.
- Quem cala, consente – observou maldosamente o banqueiro ao constatar a dúvida de Dominic em seu silencio prolongado.
- Mas eu acho que... – Dominic tentou objetar, mas não se achou capaz. Além disso, teve medo de negar o desejo de Kyle e acabar perdendo a excelente oportunidade de acompanhá-lo na ida à Praga.
- Então está resolvido. Não preciso voltar ao escritório à tarde, por isso me disponho a acompanhar Leonora às compras... Se não se importar, é claro... – convidou-se cordialmente.
- Eu posso ir com ela... Não se preocupe com isso.
- Terei o maior prazer em ajudar na escolha do vestido.
- Claro que terá, seu depravado! – praguejei.
- Você poderá nos acompanhar, Dominic. Assim minha reputação e a de sua irmã ficarão intocadas – ele falou olhando diretamente para mim, respondendo às minhas ofensas.
- É... Acho melhor assim, então...
Num arroubo de raiva e sensação de impotência diante da inércia de Dominic e da incapacidade de Nathanael em influenciar Leonora, desapareci em meio a uma nuvem de névoa branca, apenas visível aos olhos dos três machos presentes na sala. Fui diretamente a um dos jardins de meditação existentes para acolher anjos em desespero como era o meu caso naquele momento.
- O que a atordoa, Ariel? Dificuldades no trabalho? – soou uma voz grave e tonitruante que me fez estremecer alarmada.
- Chefe! O que faz por aqui?
- Procurando funcionários desgarrados, que abandonam seus protegidos por incompetência.
- Não sou incompetente!
- E o que está acontecendo com o humano que eu deixei sob sua proteção?
- Olha aqui, Samuel!
- Olhe lá como você fala comigo, Ariel. Eu sou seu superior! – Era impressão ou eu notara uma pontinha de brejeirice naquelas palavras?
- Está bem... Desculpe, mas é que estou enfrentando uma situação muito difícil e sinto que me foram ocultados dados para melhor lidar com o caso de Dominic  MacTrevor. Gostaria que me explicasse o que está acontecendo e qual a minha real missão.
- Você sabe exatamente o que está acontecendo...  Ou ainda não percebeu que o mal está envolvendo a família McTrevor?
- Sim... Eu sei que Dominique tem uma missão e que eu devo protegê-lo... Quem é Kyle Sinclair, afinal? – perguntei decidida a resolver aquele mistério – O senhor que sabe tudo, pode me dizer? Qual o segredo deste homem que pode enxergar os guardiões, falar conosco e que consegue dominar  mentes.
- O poder dele não é tão grande assim, minha cara. Digamos que ele tem um grande carisma, que receio esteja começando a afetá-la também. – disse com uma desconhecida tristeza na voz.
- O quê? De modo algum!
- Então prossiga com sua missão e afaste as influencias nefastas de seu protegido.
- Como? – perguntei incrédula com a sugestão de Sam.
- Como o Mal sempre foi combatido.
- Eu não sou uma guerreira. Apenas os anjos guerreiros, como Rafael, podem combater e destruir um ente maligno... Além disso...
- Além disso... O quê?
- Não tenho tanta certeza que Sinclair seja tudo isso que você está sugerindo.
- Não estou sugerindo nada, Ariel. Além disso, eu não disse que era Kyle Sinclair a influência maligna sobre os MacTrevor... Infelizmente. – disse em voz mais baixa.
- Então... Não é com ele que devo me preocupar?
- Só posso lhe dizer que fique atenta e que não é apenas Dominique que corre perigo. – alertou-me com um olhar cheio de preocupação e mais alguma coisa que não consegui identificar e que jamais havia visto em meu superior. Por fim, terminou seu aviso melancolicamente. – Cuide-se... Ariel.
Com esta ameaça pairando no ar, Samuel desapareceu tão silenciosamente como surgiu, deixando-me com mais dúvidas e temores que antes.
“Não entendo porque ele me encarregou dessa missão, se achava que eu era incompetente?”, comecei a raciocinar. “Tenho certeza que Sam conhece Sinclair. Por que ele não me conta o que sabe? Sinclair parece perigoso,  mas não acredito que alguém responsável pela construção de um jardim como aquele, numa antiga masmorra, em memória a uma jovem mártir seja totalmente ruim. Agora Sam me aparece e diz que ele não é a ameaça sobre Dom... Existe algo mais nesse meio e eu vou descobrir com ou sem a ajuda de meu chefe.” Por alguma razão, me sentia ansiosa como nunca estivera antes.
“Ariel...” – ouvi meu nome sendo chamado telepaticamente por Nathanael. Imediatamente materializei-me no castelo. O almoço tinha terminado e os irmãos já se preparavam para sair.


(continua...)

Oi! Parece mentira, mas  uma semana se passou e cá estamos nós de novo, publicando mais um capítulo do nosso romance. Gostaria de agradecer a presença  querida da Cris, do Junior e da Léia nos comentários, que me deixam prá lá de vaidosa, como sempre, e de J.R. Viviani, do blog Vendedor de Ilusões, a quem eu gostaria de agradecer pelas palavras e pela oferta de parceria.
Esta última semana foi complicada para mim, devido a alguns problemas no meu trabalho, que espero contornar em breve. Isso me tirou tempo e inspiração, infelizmente, o que me deixou mais  triste ainda. No entanto, são coisas que, como sempre digo, são passageiras; acidentes de percurso que a gente consegue superar mais cedo ou mais tarde. 
Gente, muito obrigada, mais uma vez, pela presença e pelo carinho de todos! É isso que me dá alegria e força para vencer qualquer obstáculo.
Beijos, meus queridos!