domingo, 29 de agosto de 2010

Confusões de um Viúvo - Capítulo IV


Pelo menos a dor de cabeça passara e a febre não o incomodara mais. Restara apenas um leve desconforto muscular. Depois de deixar Marina e Tati na escola, levaria o carro para trocar o farol quebrado. Ao pensar nisso, a imagem de Bruna mais uma vez o atacou. O carro dela tinha sido mais prejudicado, pois a lataria fora comprometida. Talvez devesse pedir desculpas, além de pagar o conserto. Ele tinha de reconhecer que sua pressa em sair do mercado tinha contribuído para o acidente. Sacudiu a cabeça e foi para o banheiro resmungando, lutando para livrar-se da imagem da professora.

Leonardo
Naquela terça, Leonardo chegou ao balé decidido a falar com a diretora a respeito da mudança sem comunicação prévia. Entregou Tati em sua sala e deixou Marina sentada na sala de aula, à espera da professora, com outras colegas. Dirigiu-se até a sala da direção. Bateu à porta e entrou ao ser convidado por uma voz feminina. Para sua surpresa, quem se encontrava sentada na mesa, onde deveria estar a responsável pela escola, era Bruna. Ela levantou o rosto para ver quem entrara e expressou imediatamente sua surpresa, que logo lhe pareceu não ser das mais agradáveis.
Bruna
Estava encantadoramente natural, quase sem maquiagem, com os cílios longos e espessos levemente realçados por rímel e um batom claro, que tornava seus lábios cheios ainda mais tentadores.
- Veio para acertar o conserto do meu carro? – perguntou sarcástica, tentando conter a súbita disparada dos batimentos em seu peito.
- Na verdade, eu esperava encontrar a diretora. Preciso conversar com ela.
- A meu respeito? – continuou ironizando.
- Posso voltar mais tarde – Ignorou-a. – A que horas posso encontrá-la?
- Talvez seja melhor falar comigo.
- Tem que ser com ela. Volto depois. Com licença. – Já estava voltando-se para a porta, quando a ouviu espirrar.
- Saúde! – não conseguiu evitar a expressão de praxe.
- Muito obrigada – agradeceu enquanto pegava um lenço de papel da caixa que estava a sua frente – Só para esclarecê-lo – continuou esfregando discretamente o lenço no nariz – Eu sou a diretora.
- Como? – exclamou surpreso.
- É o que estou dizendo. Qual é o assunto? – indagou séria.
- Mas... Eu conheço a diretora. Falei com ela não fazem dois meses, aqui nesta mesma sala.
- Sinto muito lhe comunicar que assumi na semana passada o cargo, pois acabo de comprar esta academia – disse, sem conseguir encará-lo – Infelizmente não houve tempo de avisar aos alunos oficialmente. De qualquer maneira, a Isis vai continuar me ajudando na direção por algum tempo. No momento ela está em férias e só volta no próximo mês. Como vê, senhor... Como é mesmo o seu nome? – perguntou, franzindo as sobrancelhas entre os olhos e olhando-o com desdém.
- Leonardo. Leonardo Barth... E o seu é? – redarguiu no mesmo tom irritante.
- Bruna. Bruna Scalzzi – respondeu fuzilando-o com seus expressivos olhos azuis cintilantes – Pode me dizer agora qual é o assunto que o traz aqui?
Leonardo piscou involuntariamente os olhos enquanto tentava lembrar-se do motivo que o levara até ali.
- Eh... É a respeito da troca de professora na turma da minha filha, Marina.
- Não houve troca alguma... – revirou sua memória – Ah! Já sei a que se refere. Na última aula de quinta, eu apenas substitui a Ana, pois ela precisava ir ao médico. Se o senhor for até lá agora, verá que ela já está com a turma de sua filha. Mais algum problema?
- A senhorita é sempre assim tão pedante? – não pode evitar lançar a pergunta que estava arranhando seu ego e sua garganta.
- Não. Só quando falo com encrenqueiros – lançou a resposta, ofendida.
O sangue imediatamente subiu à cabeça de Leonardo. Sua vontade era dizer alguns desaforos àquela bailarina de araque, mas não faria um escândalo dentro da escola de suas filhas. Quem ela pensa que é?
- Em virtude da sua falta de educação, é melhor eu me retirar. Boa tarde – acabou por preferir abandonar o campo de batalha.
- O senhor me ofendeu primeiro! – exclamou ela, arrependida de tê-lo chamado com o termo insultuoso.
Como ele continuasse no seu movimento de abrir a porta para sair, ela continuou:
- Desculpe! Por favor, eu não devia ter falado assim. – engoliu em seco o orgulho, afinal ela era diretora de uma escola e não podia dar-se ao luxo de tratar mal seus clientes, mesmo que eles merecessem.
Ele parou onde estava e, sem olhar para ela, falou:
- Não se preocupe. Já estou me acostumando... Além disso, já resolvi a minha dúvida. Até logo – e fechou a porta atrás de si, deixando-a com cara de boba.
- Eu e a minha boca grande! – recriminou-se – Agora vou perder as alunas... E o pai...

Pisava duro e arfava como se tivesse subido um lance de escadas em disparada. Leonardo seguia pelo corredor, cego pela fúria. Não era muito fácil tirá-lo do sério. Costumava ser calmo e enfrentar discussões como aquela sem alterar-se. No entanto, a tal Bruna tinha a capacidade de arrancá-lo do seu prumo. Talvez devesse levar em consideração que seus últimos encontros não tinham sido lá muito favorecidos pela sorte e colocar-se no lugar dela. O fato de tomar um banho forçado no lago da Redenção e ter o carro amassado num estacionamento não devia ser muito fácil de enfrentar para uma mulher provavelmente acostumada com a leveza do balé e uma vida tranquila de filhinha de papai, que era o que ela parecia ser. Certamente entre ser dona de boutique ou sócia numa escolinha de dança, optara pela última opção, para dar algum sentido a sua vida inútil de dondoca. Pelo menos era isso que ele preferia pensar a seu respeito, tornando-a menos atraente aos seus olhos.
- Ei, Leo! Não me ouviu chamar? – soou a voz de Cláudia, acordando-o de seu transe.
- Hein?... Ah! Oi, Cláudia. Tudo bem?
- Distraído... O que houve? Está com uma cara péssima. Algum problema com as meninas?
- Não... Problemas de trabalho. Nada muito importante... – mentiu.
- Olha, eu queria pedir desculpas por sábado à noite.
- Por quê?
- Por causa da Denise. Sabe, o Fabrício não me avisou nada. Era para ser só um jantar a três, mas sem eu saber ele convidou a irmã. Não que ela seja má pessoa, mas não foi este o intuito do meu convite. Eu queria realmente que você saísse um pouco da rotina e relaxasse.
- Não se preocupe, Cláudia. Gostei muito de ter saído com vocês.
Dessa maneira, ficaram batendo papo até a hora do encerramento das aulas das filhas, sem perceberem que alguém os espionava.
Será que me enganei de mulher? Será que esta é a esposa dele? Ela também estava no jantar, mas pensei que era casada com o gordinho... – refletiu Bruna – É melhor parar com isso! Pareço uma idiota olhando para eles desse jeito. Toma jeito, sua estúpida! – e tratou de voltar para sua sala, tentando tirar Leonardo Barth da cabeça.


- Papai, será que a gente pode ir no Mac? – sugeriu Marina ao entrar no carro.
- No Mac? Em plena terça-feira, Marina? Não acho que seja uma boa...
- Ah, papi, vamos! – exclamou Tati, evidentemente animada para o programa inusitado num fastfood.
Sabia que não era o ideal, mas estava desanimado demais para contrapor-se aos rostinhos iluminados que o observavam atentamente, aguardando o seu sim.
- Bem... Em vista de não ter nada melhor em casa, acho que podemos quebrar esta regra hoje. Só hoje! – acabou por dizer sorrindo, diante dos gritinhos de satisfação de sua pequena dupla.
Seguiram para o shopping mais próximo. Por sorte ainda não havia muita gente aguardando na frente dos caixas. Ainda era cedo para jantar para a maioria das pessoas. Leonardo acabou por tranquilizar-se com sua resolução. Seria bom sair da um pouco da rotina. Solicitaram os lanches, escolheram os brinquedos oferecidos como brinde e, assim que se sentaram à mesa, Tati olhou-o e disse:
- Preciso fazer xixi...
Contraindo a testa e se maldizendo por ter esquecido de levá-las ao banheiro antes de sentar para a refeição fora de casa, tornou a olhar as bandejas à sua frente e a face aflita de Tati.
- Não dá para segurar um pouco, filha? – tentou.
- Não dá, papai... Tô muito apertada...
Começou a recolher os hambúrgueres, fritas, caixas e brindes, que os acompanhavam, colocando tudo sobre uma bandeja. A partir daí, encaminhou-se para o banheiro feminino, já antecipando as dificuldades que teria de enfrentar.
- Marina, tu entras com a tua irmã e a ajuda, tá bom? O pai fica aqui na porta esperando por vocês.
- Tá bom, papai – disse compenetrada e adquirindo os ares de irmã mais velha. – Vem, Tati, vem com a mana – comandou dando a mão para a caçula.
Parado na porta, segurando os lanches, observava ansioso o movimento de entrada e saída das mulheres, esperando que o toalete esvaziasse, caso as meninas precisassem dele. E isso não tardou a acontecer.
- Pai! Pai! A Tati fez cocô!
E agora, droga! Como vou fazer?
Desesperado, olhava a sua volta, quando viu uma auxiliar da limpeza do estabelecimento aproximar-se.
- Por favor, a senhora trabalha aqui?
- Sim – respondeu ela com o sorriso mais cativante do mundo – Precisa de alguma coisa?
- Na verdade, sim. Minhas filhas pequenas estão neste banheiro e eu preciso entrar para ajudá-las.
Neste instante, a voz de Marina se fez ouvir de novo.
- Papai!!! Tu tem que limpar a Tati!
A mulher fez uma cara péssima e foi logo tirando o corpo fora.
- Eu não posso ajudá-lo nisso.
- Não estou pedindo que a senhora limpe a minha filha. Só gostaria que entrasse ali e verificasse se o banheiro está vazio, para que eu possa entrar.
- No banheiro feminino o senhor não pode entrar – falou como se não entendesse a gravidade de sua situação – Onde está a mãe delas? – indagou olhando para os lados.
- Elas não têm mãe... – falou irritado – Olhe, eu lhe dou uma gorjeta se fizer este favor para mim. É só ver se a área está liberada e impedir que mais alguém entre até eu poder ajudar minha filha.
Como se tivesse ouvido uma palavra mágica, a funcionária enfim cedeu ao seu rogo.
- Espere aqui um pouco. Já volto – disse entrando no sanitário, para logo em seguida retornar e informar – Está vazio. Pode entrar que eu cuido para que ninguém entre.
- Muito obrigado – agradeceu secamente e entregou-lhe a bandeja – Pode segurar um pouco? É o jantar delas.
- Está bem – obrigou-se a aceitar, esperando que a gorjeta valesse a pena.
Ele entrou rapidamente, aproveitando o pouco tempo que certamente teria, e logo viu Marina a sacudir os braços, mostrando a localização de Tati numa das cabines.
- Pronto. O pai já está aqui – acalmou-as – Marina, se tiver vontade também, aproveite e seja rápida. Eu não posso ficar muito tempo, pois é proibida a entrada de homens aqui.
- Tá bem, papai. Vou fazer xixi.
Terminado seu trabalho, com duas crianças perfeitamente aliviadas de suas necessidades, separou uma nota de dez reais e saiu. Felizmente a auxiliar continuava ali na entrada, com cara de poucos amigos, mas ainda segurando a bandeja e impedindo a entrada de duas adolescentes que olharam para ele com cara de espanto, antes de iniciarem as risadinhas e correrem para dentro do lavatório.
- Muito obrigada pela sua gentileza, senhora – agradeceu entregando a gorjeta.
- Não tem de quê – falou áspera. Pegou o dinheiro, entregou a bandeja e sumiu pelo corredor afora.
- É, já não se encontra mais pessoas solícitas como antigamente – suspirou enquanto se encaminhava de volta para a praça de alimentação.
- Que que é solista, papai? – perguntou Tati.
- S-o-l-í-c-i-t-a, minha filha... É o mesmo que prestativa.
- Que que é pestitiva? – tornou a perguntar, com dificuldades para pronunciar as palavras desconhecidas.
- P-r-e-s-t-a-t-i-v-a, Tati. Simplificando, é uma pessoa educada, querida. Que tal sentarmos naquela mesa? – mudou de assunto, antes que Tati resolvesse continuar seu inquérito, apontando para uma das mesas junto à parede, com um banco estofado fixo de cada lado, compondo o reservado.
Afinal, conseguiram usufruir de sua comida fria e dos refrigerantes sem gás, que foi o que restou de todo aquele buchicho. Felizmente, as duas principais interessadas não pareciam preocupar-se com isso, o que fez Leonardo sorrir vendo-as deliciar-se com seus sanduíches e brinquedos ganhos no pedido. Lembrou das primeiras vezes que este tipo de incidente tinha ocorrido. Um caos... Quase morrera de vergonha, na primeira vez, quando se viu obrigada a pedir para uma senhora, que entrava no banheiro, para ajudar Marina. Pior tinha sido o dia em que outra mulher olhara para ele com cara de nojo por verificar que não seria apenas urina a limpar. Depois de tantos reveses, aprendera que a melhor maneira era buscar ajuda com algum funcionário local. Alguns se mostravam mais simpáticos e diligentes, enquanto que outros agiam como a funcionária de agora. Para estes últimos instituíra o pagamento de propina, que raramente falhava.

Depois de colocar as filhas a dormir, foi verificar se tinha algum recado na secretária eletrônica. Apesar de usar o celular, sempre alguém deixava uma ou outra mensagem. Surpreendentemente, a primeira era de Airton, seu sócio. Ele não costumava ligar para o seu telefone fixo. Instintivamente olhou para o visor de seu celular e viu que tinha várias chamadas não atendidas, provavelmente no horário em que estavam no shopping. O segundo era de sua sogra, D. Celina, que falou sem parar até a ligação ser interrompida por ter ultrapassado o tempo máximo de gravação de mensagens. Ela queria marcar um horário para mandar uma moça conversar com ele a respeito do trabalho de babá. Imediatamente seu sensor para problemas soou. Como ela conseguiu arranjar alguém tão rápido?

Aírton em Canela

- Alô! Airton?
- Oi, meu velho! Tudo bom?
- Tudo! Recebi o seu recado. Como vão as obras por aí?
- Acho que vamos conseguir entregar no prazo, se tudo continuar no ritmo em que está. Gostaria que você desse uma chegada para ver pessoalmente a construção e discutir alguns detalhes. Que tal um passeio a serra neste final de semana? Acho que a Marina e a Tati vão gostar de mudar de ares também.
- Não é uma má idéia... – pensou por segundos e decidiu – Está bem. Estarei aí no sábado pela manhã. E, Airton?
- O que foi?
- Obrigado por estar fazendo este trabalho praticamente sozinho. Eu gostaria de estar auxiliando mais, mas...
- Leo, pare de se desculpar. Estou adorando estas férias forçadas aqui. Gosto deste lugar. Não há engarrafamentos, as pessoas são agradáveis e trabalhadoras e inexiste poluição de qualquer tipo. O cheiro mais desagradável que sinto de vez em quando é o do esterco de cavalos, que ainda atravessam a cidade – gracejou – E o escritório? Muito trabalho?
- Felizmente, isto não falta – falou, ainda sorrindo com a observação de Aírton sobre Canela. – Estamos com vários projetos novos. Tem idéia de quando poderá vir à Porto Alegre? Também gostaria de discutir com você alguns destes projetos.
- Olha, do jeito que a coisa está indo, acho que poderei estar aí na próxima semana. Talvez até volte com vocês. O nosso mestre-de-obras é muito bom e de confiança. Não terei problemas em deixá-lo como responsável por alguns dias. – Fez uma pequena pausa e continuou – E você, cara? Tirando os negócios, como vai indo com... A vida?
- Bom você falar nisso. Graças a uma conversa que você teve com a Cláudia e o marido dela, tive que enfrentar um jantar e um encontro às escuras.
- Que conversa? – perguntou tentando lembrar o encontro a que Leo se referia – Ah! Lembrei! Eles estiveram aqui há umas vinte dias. Mas o que eles fizeram para acabar com a sua solidão? – indagou sorrindo.
- Nem te conto. Melhor pessoalmente... Só para resumir, o Fabrício tentou me empurrar a irmã solteirona, que é a cara dele.
O outro explodiu numa gargalhada do outro lado da linha.
- Não brinca! Mas ela deve ser linda!
- Vou apresentá-la quando vieres prá cá. Tenho certeza que vocês se darão muito bem... – ameaçou, tentando não rir junto com o amigo.
- Mas falando sério, Leo. Continua no celibato?
- Melhor a gente falar pessoalmente no fim de semana – respondeu evasivamente.
- Opa! Tem alguém a vista? Não brinca que é a irmã do Fabrício...
- Claro que não. Não tem ninguém.
- Puxa! E eu achando que você tinha saído do limbo... Então, tá! Até o sábado, então. Se cuida!
- Até, Aírton! Um abraço!
- Outro!
A ligação foi finalizada, deixando Leo a refletir sobre a conversa. Depois de ter completado nove meses de luto, Aírton começou a estimulá-lo a sair e conhecer outras mulheres. Não conseguia imaginar o amigo sem ninguém. Sabia o quanto ele amava a esposa, mas ela tinha partido. Leo precisava voltar à vida e isto, para Aírton, significava namorar e... Transar. Neste ponto, pensava como seu irmão, Miguel. No entanto, a presença suave de Cris ainda o envolvia. Ela fora tirada de sua vida de forma tão súbita que era difícil de assimilar sua ausência definitiva. Ainda a tinha viva na memória, nos cantos do apartamento, nos olhos de Tati, no sorriso de Marina... Nestes meses todos, se dedicara como um doido à sua família e ao seu trabalho, esquecendo de qualquer outra distração. Sentia falta de sexo, mas não o imaginava sem Cris. Realmente não sentia atração por outras mulheres... Pelo menos até agora...
Pigarreou e lembrou-se que tinha outro telefonema a retornar, embora sua vontade fosse simplesmente “esquecer” que ouvira o recado de D. Celina. Quem sabe depois de comer alguma coisa? Não. Era melhor não adiar o problema e evitar uma indigestão.
Pegou o telefone e teclou o número tão conhecido.

D. Celina
- Alô?
- Alô, D. Celina. Sou eu, Leonardo. Ouvi o seu recado e...
- Ah! Leonardo! Que bom que me ligou. Já tenho uma moça para ajudá-lo com as crianças. Quando ela pode procurá-lo para tratar o emprego?
- Não sei D. Celina. Na verdade, não sei se...
- Leonardo, você precisa de ajuda sim. As meninas precisam do cuidado de uma mulher. Esta gosta de crianças, sabe cozinhar, lavar, passar e, ainda por cima, tem bom nível cultural – enumerou as características da esposa ideal para a maioria dos homens, fazendo Leo se perguntar se ela era casada, contraindo a boca num sorriso irônico.
- Está bem, D. Celina. Que tal ela me procurar no escritório na sexta-feira, pela manhã? Digamos, às dez horas?
- Ótimo, meu filho – ela só o chamava assim quando conseguia impor sua vontade sobre ele, o que era raro – Ligarei para ela e darei o seu endereço. Qual é mesmo? – Ela nunca lembrava ou fazia questão de esquecer a rua e o número de seu trabalho, apesar dele estar localizado há apenas duas quadras da sua casa.
Endereço anotado e despedidas feitas, Leonardo foi tratar de tomar um banho e comer alguma coisa antes de se deitar, porém o medo do que enfrentaria com esta “maravilhosa babá” passou a assombrá-lo.

(continua...)



Estão gostando? Espero que sim. Leo está começando a ficar interessado em Bruna, saindo do luto prolongado. Dá prá imaginar um viúvo como este sozinho? (rsrsrs)
Aguardem os próximos capítulos...
Beijinhos!

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Confusões de um Viúvo - Capítulo III

Depois de uma agitada noite de sono, acordou com corpo dolente e uma tremenda dor de cabeça. Provavelmente também estava com febre. Devia imaginar que aquele banho forçado no lago da Redenção não seria totalmente inócuo. E nem sequer recebera um agradecimento daquela professorinha mandona e mal-educada. O jeito como ela o tratou e como dava ordens para o namorado bobão foi realmente desagradável. Ainda bem que era apenas professora de dança e não de boas maneiras. Falaria com a diretora da escola para saber o porquê de terem trocado a professora Ana sem aviso prévio e se era possível Marina ir para outra turma.
Levantou-se com algum esforço e foi ao banheiro.
Leonardo no espelho

Enquanto escovava os dentes analisava a imagem refletida no espelho. Cara, você está péssimo! Além das olheiras, notava algumas rugas em torno dos olhos e novos fios de cabelos brancos em meio aos castanhos. O nariz continuava enorme, apesar de Cris sempre dizer que achava ele um charme e que homem tinha que ter nariz grande... Cris... Ela adorava quando ele ficava de cara limpa, pois gostava de seu queixo partido, entretanto ele sentia-se melhor escondendo as bochechas atrás da barba que sombreava seu rosto.
Depois de terminar a higiene da boca, endireitou os ombros, olhou satisfeito para o ventre razoavelmente firme, mantido graças aos exercícios semanais que voltara a praticar na academia ao lado do escritório. Aproveitava o horário de almoço para este fim, sempre que possível. Depois de ter ficado parado alguns meses, voltara a cuidar de sua forma física. Não por vaidade, mas para manter-se saudável. Baixando um pouco mais o olhar, suspirou melancólico lembrando os conselhos de seu irmão no domingo. Ainda se sentia traindo Cris ao pensar nestas coisas. Rapidamente, voltou ao abdômen. Andava descuidado quanto à alimentação ultimamente. Sempre contara com sua mulher para o preparo das refeições e ela era muito preocupada com o que colocava na mesa de sua família. Depois que ela se foi, por um tempo, comprou refeições congeladas, mas as meninas logo começaram a reclamar do sabor. Talvez comprasse um livro de culinária para aprender a cozinhar, tipo “qualquer um é capaz de cozinhar”. Seus conhecimentos neste campo eram mínimos. Sua maior especialidade era fazer arroz de microondas. Pensaria sobre isto mais tarde. Agora precisava era de um bom analgésico. Precisava preparar o café, acordar as meninas e levá-las à escola. Logo chegaria sua faxineira, D. Nena, diminutivo carinhoso de Maria Helena, dado pelas crianças. Ela os visitava três vezes por semana, mantendo a casa em ordem e as roupas limpas e passadas. Fora bem clara, logo depois da morte de sua mulher, que não poderia ajudar com as meninas. Chegou a indicar outra senhora para o serviço. Porém, a tal mulher passava a tarde gritando e dando ordens. Ao voltar para casa à noite, encontrava Marina chorando e Tati irritadiça. Perderam peso e começaram a tornar-se agressivas Depois de dois meses de experiência, mandou a fera embora. Nunca mais pediu uma indicação de babá para D. Nena, que por sua vez ficou com um enorme sentimento de culpa por ter sido ela a indicar tal pessoa. Com isso, as filhas tiveram que ser colocadas na escolinha em tempo integral, caso contrário ele não poderia trabalhar. Reclamaram um pouco no início. Sabia o quanto elas deviam estar sofrendo com as mudanças, o medo de abandono e o medo de perdê-lo, da mesma forma que tinham perdido a mãe. Aconselhou-se com um amigo psicólogo sobre a melhor maneira de conduzi-las. Procurava nunca atrasar-se para pegá-las na saída da escola e dedicava atenção redobrada nos momentos em que estavam juntos. Precisava deixá-las seguras. No início não foi fácil. Muito choro e muitas noites de pesadelos, mas finalmente parecia que as coisas tinham se acalmado. O último sábado, apesar de não ter sido dos mais agradáveis, mostrou-lhe que sentia falta de sair com amigos, ir a um cinema ver um bom filme, que não fosse “censura livre” e, quem sabe...? A perda de Cris fora trágica, arrancando-a da vida de forma brutal e inesperada. Sofrera imensamente. Só não desistiu de tudo, pois suas filhas precisavam dele. Teve que se mostrar forte para continuarem sendo uma família. Agora, a saudade de Cris tornara-se menos sofrida e ele percebia que a vida seguia seu rumo natural. Não podia mais viver ao lado de um fantasma. Mesmo que este fantasma fosse muito doce. Em vários momentos de crise lembrava palavras dela, frases ou observações, que o confortavam e amenizavam a dor. Apesar da pouca idade, ela era sábia e mais madura que ele. Não era difícil imaginar que, onde quer que ela estivesse, desejaria que ele reconstruísse sua vida.
Terminou de se vestir, procurou um comprimido para dor na caixa de medicamentos no banheiro e foi preparar o café. Olhou a bagunça em que estava a casa, fechou os olhos e agradeceu por segunda-feira ser dia de faxina. Colocou a cafeteira para funcionar, preparou alguns sanduiches de queijo, leite quente para Marina e um copo de iogurte líquido para Tati. Verificou que a geladeira estava quase vazia, bem como sua pequena dispensa, sinalizando que precisava ir ao supermercado. Guarneceu as lancheiras da escola com sucos em caixinhas, frutas e biscoitos integrais.
- Bom dia, papai... – disse Marina, no meio de um bocejo, esfregando os olhos.
Ela sempre acordava com o movimento do pai na casa, pela manhã. Tati era mais preguiçosa.
- Bom dia, filhinha – respondeu, dando-lhe um beijo no topo da cabecinha – Venha tomar o seu café, enquanto acordo a Tati e a arrumo para a escola.
Tomou seu analgésico com um gole de café preto e foi rumo ao quarto cor-de-rosa. Estava sem apetite. Já ia preparando o seu bom dia para Tati, quando notou que sua cama estava vazia. Sorriu e voltou ao corredor, dirigindo-se para o seu quarto.
- Será que a Tati já foi para a escola? – falou em tom mais alto que o habitual, olhando para o amontoado sob o lençol de sua cama, que corcoveava e emitia um sorrisinho abafado – Ou será que ela está escondida por aí? – continuou falando, aproximando-se do montinho que ria.
- Búuu – gritou Tati, saindo debaixo dos lençóis, repentinamente, tentando assustá-lo.
- Bah! Que susto – exclamou colocando a mão sobre o peito, como se tivesse o maior susto de sua vida. Sabia que ela ficaria contrariada se ele não demonstrasse espanto. Este teatrinho era repetido duas a três vezes na semana. Ela parecia nunca cansar-se dele.
Depois de abraçá-la e beijá-la, pegou a pequenina no colo e levou-a até o quarto para vesti-la.
Após o café, sentindo-se um pouco melhor sob o efeito do remédio que tomara, pegou sua carteira, as mochilas e as lancheiras, e saiu apressadamente de casa equilibrando toda aquela bagagem. Precisava deixar as meninas na escola e voar para o escritório, onde tinha reuniões com clientes e com a sua equipe, além de dar andamento aos projetos assumidos. A tarde seria mais calma, mas precisava visitar duas obras em fase final.
Já estavam na porta do elevador de serviço, que os levaria para a garagem do prédio, quando uma sorridente D. Nena cruzou com eles, cumprimentando-os alegremente. Pelo menos naquela manhã ela não se apresentava com nenhuma queixa sobre as dores na coluna ou sobre sua enxaqueca, para alívio dos ouvidos de Leonardo.
- Bom dia, D. Nena – cumprimentou-a, já se despedindo, antes que ela mudasse de idéia e começasse a falar sobre suas dores ou como fora seu triste final de semana – Já estamos atrasados. Se precisar de alguma coisa, a senhora sabe meu telefone. Até!
- Estou precisando de mais produtos de limpeza, seu Leo. Já está tudo no finzinho... – era tudo que ele não queria ouvir àquela hora da manhã. Fora precipitado, pensando que passaria incólume diante de sua “faxineira fascinante”, lembrando da composição de Nei Lisboa.
- Está bem, D. Nena. Hoje dou um jeito de ir ao super e compro o que preciso. A senhora me liga mais tarde para me dar a lista, está bem? – disse já de dentro do elevador.
- Tá bom, seu Léo, tá bom... – disse condescendente.

Era quase dezessete horas, quando chegou ao estacionamento do supermercado, munido com a lista de exigências de D. Nena. Sentia-se péssimo. O mal estar da manhã voltara. A cabeça pesada e o corpo dolorido incomodavam. Não via a hora de poder chegar em casa, tomar um banho e deitar.
Estava no caixa pagando pelas compras quando olhou seu relógio e se surpreendeu, mais uma vez, com a velocidade dos ponteiros. Faltavam poucos minutos para a escola abrir seus portões e liberar os alunos. Não podia atrasar-se. Pensou nos rostinhos tristes de Tati e Marina vendo os outros pais buscando os filhos. Jogou as sacolas de compras no porta-malas e assumiu a direção. Acionou a ré, olhou para os dois lados, certificando-se de que nenhum veículo aproximava-se, e arrancou. No mesmo instante, um carro surgiu na sua traseira. A batida foi inevitável. Depois de resmungar impropérios para o motorista distraído usando todo o seu repertório de palavrões, contou até dez e saiu do carro. Uma mulher estava com a cabeça enterrada na direção do outro veículo, maldizendo-se.
- A senhora está bem? – perguntou por uma questão de educação.
Quando ela levantou o rosto, qual não foi a surpresa dele ao reconhecer Bruna.
- Não acredito! – exclamou ela ao vê-lo – Isto já é perseguição!
- Eu que o diga – replicou ele, vendo-a sair do carro amassado.
Ambos olhavam as avarias de seus veículos. Leonardo ganhara um farol quebrado e Bruna um belo de um amasso na lataria.
- Você não viu a luz de ré acesa? Para onde estava olhando? Costuma-se andar devagar e observando a sua volta quando se está num estacionamento deste tamanho.
- Você apareceu do nada! – disse ela, já saindo do carro com as mãos na cintura. Vestindo um jeans e uma regata branca, que realçava o seu bronzeado, ela estava linda. Trazia os longos cabelos dourados presos num coque improvisado e as faces ligeiramente coradas – E agora? O que vamos fazer?
- Olhe – respondeu nervoso, olhando mais uma vez para o relógio – Tenho um compromisso agora e não posso ficar batendo boca com você. Mande consertar o carro, que eu pago. Agora, por favor, tire ele daí.
- O quê? – disse indignada com o pouco caso dele – Eu não vou sair daqui assim. Vou chamar um policial e fazer a ocorrência.
- Eu não posso esperar. Além do mais, eu já disse que pago o conserto. Você é surda? – Começava a se preocupar mais uma vez com o tempo e com as filhas a sua espera.
- Ainda por cima é grosso! – vociferou. Mal terminou de falar, não pode conter um sonoro espirro.
Leonardo tinha chegado ao limite de sua paciência, mas não conseguiu controlar um discreto sorriso de escárnio, que ela não percebeu, ao ouvi-la espirrar. Antes que ela voltasse a falar, decidiu acabar com aquela situação incômoda o mais rápido possível. Afastou Bruna, entrou no seu carro, deu a volta na chave que se encontrava na ignição e, enquanto ela praguejava contra ele, dirigiu rapidamente até uma vaga bem próxima. Estacionou e voltou com as chaves na mão. Usando todo seu autocontrole, entregou-as à dona. Lançou-lhe um olhar frio e disse:
- Você sabe como me encontrar. Meu telefone está nas fichas das minhas filhas na escola de balé. Boa tarde!
Virou-se, entrou em seu próprio carro, diante de Bruna boquiaberta, ativou a ignição e deu ré. Saiu sem dar mais satisfações, olhando atentamente ao redor para evitar novas surpresas.
- Ai, que ódio! – esbravejou raivosa, emitindo novo espirro – Quem ele pensa que é para me tratar deste jeito, como se eu fosse uma retardada? Miserável!
Algumas pessoas estavam paradas olhando o espetáculo oferecido. Como não gostava de escândalos púbicos, pelo menos até conhecer aquele homem, respirou fundo, fechou os punhos, ergueu a cabeça e seguiu para o seu carro estacionado. No caminho ainda teve de ouvir um comentário malicioso de um dos curiosos parados:
- Só podia ser mulher prá bater carro em estacionamento de super...
Ao ouvir tamanha idiotice, sentiu ânsia de pular no pescoço do estúpido, mas conseguiu controlar-se, seguindo em frente.
Foi até o carro, sentou-se ali por alguns momentos até conseguir recuperar a calma. Sua cabeça latejava e não conseguia respirar normalmente, graças a uma grande obstrução nasal que a acompanhava desde a noite anterior. Respirou fundo pela boca, teve um acesso de tosse e acabou por sair para fazer suas compras, que ainda eram necessárias. Infelizmente, prometera fazer um jantar especial para Álvaro naquela noite. No dia seguinte pensaria em como agir. Sua mente ensaiava uma vingança contra aquele prepotente. Nem que fosse mandar-lhe o orçamento mais caro que conseguisse. Além disso, preciso comprar um antigripal com urgência, graças a este monstro, também!, lembrou irritada.

- Papai, tu tá brabo? – perguntou Tati ao ver a cara amarrada do pai ao buscá-las na escola.
Quando chegou, elas ainda estavam nas respectivas salas de aula em companhia das professoras, que sempre aguardavam a chegada dos pais até quinze minutos depois do sinal ter soado. Ao fim deste prazo, os alunos eram encaminhados para uma recreação comum.
- Não, filhinha – respondeu sorrindo, desarmado pela pergunta inocente.
Continuava mal-humorado, pois agora teria que ir ao mecânico para consertar seu farol, no meio de tantas coisas a fazer. Lembrou do espirro. Pelo menos tinham alguma coisa em comum agora. Um terrível resfriado... Tentava tirar a imagem de Bruna furiosa, com as mãos na cintura fina e delicada, soltando desaforos contra ele através daquela boca de lábios cheios e sensuais...
- Arre! – exclamou em voz alta, exonerando aqueles pensamentos, assustando as meninas no banco de trás.
- Que foi, papai? – perguntou Marina magoada, pensando que a exclamação fora dada contra ela, que conversava distraidamente com a irmã.
- Nada, amorzinho. Papai só falou em voz alta. Não foi nada, não – tranquilizou-a. Devo estar perdendo o juízo, refletiu amolado, sentindo tesão por uma desequilibrada como aquela.
Seguiu direto para casa onde a rotina de final de dia o aguardava.



- Agora me conte. O que houve para você estar com este mau humor? – perguntou Álvaro divertido com o cenho franzido de Bruna.

Álvaro
- Estou resfriada e bati o carro – respondeu secamente.
- Onde? – perguntou sobre o veículo, já que o resfriado era evidente graças à voz anasalada dela.
- No supermercado.
- Como? Você se machucou?
- Não. Amassou um pouco a lataria na lateral.
- Então não fique chateada. Conheço uma oficina excelente que te arruma isto em um ou dois dias. Foi só isto mesmo? – perguntou novamente, estranhando a cara fechada dela.
- Não... Adivinha quem me bateu? – indagou com olhar feroz.
- Quem?
- O assassino do lago.
- Quem?
- O cara que tentou me afogar no lago da Redenção ontem. Acredita nisso?
- Sério? – disse surpreso – Mas ele não tentou afogá-la. Pelo contrário, ele a salvou.
- Eu não acreditei quando vi. – Não deu ouvidos à defesa de Álvaro – Eu estava procurando uma vaga para estacionar, quando fui atingida por um carro dando ré. Quando olhei o motorista, era ele.
- Mas você não olhou para os lados enquanto dirigia? Ou estava correndo num estacionamento?
- Você também? Vai defender aquele grosseirão? – se indignou com a observação idêntica àquela que seu agressor fizera à tarde – Vocês homens são todos iguais. Sempre põem a culpa na mulher.
- Estou apenas dizendo que se deve ter cuidado ao andar neste tipo de local. Ele também não deve ter olhado direito. Talvez os dois tenham sido culpados.
Depois da última frase, Álvaro ficou olhando para Bruna com ar maroto.
- O quê? Por que está me olhando assim?
- Nada... – falou disfarçando e colocando mais uma porção de comida na boca – O seu risoto está uma delícia. Estava morrendo de saudades dos seus quitutes.
- Eu conheço você... O que está pensando? Essa sua cara de malandro não me engana.
- É que eu nunca a vi tão furiosa com alguém – disse sem olhar para ela, saboreando o arroz arbório, cozido ao ponto, envolto em gorgonzola e shitakes.
Bruna
- E aí? O que está insinuando?
- Nada. Não estou insinuando nada.
- Álvaro... Coma! É melhor do que ficar pensando bobagens – falou cortante, colocando uma boa garfada na boca, quase com raiva, lembrando de como se sentira quando fora salva pelo homem no lago e do seu olhar desafiador no estacionamento.
- Não me lembrava dessa sua facilidade para corar quando está brava...
- Quem está corada? Está vendo coisas! Ou tirou a noite para me irritar também?
Álvaro continuou rindo em silêncio para não correr o risco de levar um prato de risoto no meio da cara. Mas tinha a impressão que Bruna começava a nutrir algo mais que mera antipatia por seu novo “amigo”. Nunca a vira reagir daquela forma por causa de uma pessoa.

Leonardo custou a encontrar o sono, perdido graças às lembranças daqueles últimos três dias. Não entendia porque não tirava a imagem daquela maluca da sua cabeça. No dia seguinte daria um jeito de falar com a diretora da escola para mudar Marina de turma. Não podia permitir a filha tendo aulas com uma desmiolada. Era isso que ia fazer...

Estava numa praia deserta. O céu límpido, a areia fina e fofa sob seus pés e o calor do sol as suas costas. Apesar disto, sentia-se preocupado com alguma coisa. Parecia buscar algo ou alguém naquele dia perfeito. Estava agitado e olhava para todos os lados incessantemente. Foi quando, no meio das ondas azuis adornadas pela espuma branca, escutou um grito. Correu para ver quem era. A mulher de cabelos louros surgiu pedindo socorro. Pode sentir a água gelada envolver-lhe. Logo ela estava em seus braços, totalmente molhada, com um vestido branco colado ao corpo, desvendando suas formas sensuais. Quando ela abriu os olhos, sentiu-se compelido a beijá-la. Aproximou-se lentamente de seus lábios, hipnotizado pelo olhar tentador...
- Papai... Papai... – sussurrou Tati, cutucando o pai na penumbra do quarto.
- Ahn? O que foi? Tati? – disse, mal conseguindo abrir os olhos.
- Fiz pipi na cama... – revelou choramingando.
Leonardo tentou desanuviar a mente sonolenta para entender o que estava acontecendo.
- Ah, filhinha... Agora?... – raciocinou melhor – Não tem problema. Papai vai te trocar e tu vens deitar comigo. Está bom?
- Tá bom, papai... – respondeu esfregando os olhinhos.
Ao levantar, se deu conta da ereção que conseguira graças ao seu sonho e agradeceu por estar vestindo seu pijama e pela penumbra no quarto. Levou Tati até o banheiro, onde a deixou esperando, e foi buscar uma muda de roupa limpa. Nesse meio tempo, seu físico voltou ao normal. Depois de trocá-la, carregou-a no colo até o quarto. Deu-lhe um beijo na testa e disse que ia até a cozinha tomar um copo de água. Voltaria num instante. A noite estava quente e sua garganta seca. Aproveitou para tomar mais um analgésico. Talvez o ajudasse a dormir melhor. Apesar do calor da noite, às vezes ainda sentia um arrepio de frio percorrer-lhe o corpo. Quando deitou ao lado de Tati, a pobrezinha já tinha adormecido. Ficou acariciando seus cabelos, pensando até quando ela continuaria com este problema que o pediatra chamava de enurese noturna. Ela tinha adquirido a continência urinária pouco antes de completar os dois anos. Quando perdeu a mãe, passou a urinar quase que diariamente na cama. Agora os episódios já eram mais raros, mas ainda aconteciam, quando menos se esperava. Já tinha trocado o seu colchão pelo menos três vezes desde que Cris se fora. Verificou mais uma vez o despertador, com medo que não conseguisse acordar pela manhã e perdesse a hora. Acabou pegando no sono novamente, exaurido pelo mais puro cansaço. Porém, a última imagem que passou diante de si foi a do sonho que tivera minutos antes.

Bruna já estava cansada de rolar por cima dos lençóis de sua cama. Não conseguia esquecer aqueles olhos verdes. Tentava sentir desprezo por ele, mas não conseguia experimentar nada além de uma curiosidade absurda de saber como ele beijava. Tinha que parar com aquilo. Ele era louco, grosseiro e, o pior de tudo, era casado! Não entendia as reações de seu corpo quando o via ou pensava nele. Até Álvaro já tinha percebido alguma coisa no ar. Recém voltara para casa, depois do acidente e da reviravolta que dera em sua vida. Agora que estava conseguindo recolher os cacos e refazer-se, não podia deixar nada nem ninguém interferir. Principalmente um homem que era o próprio pára-raios de confusões. Pensou em como tivera sorte em encontrar aquela academia de dança. Continuaria participando daquilo que mais amava fazer na vida – dançar. O seu diploma de advogada continuaria guardado para qualquer eventualidade. Virou-se mais uma vez na cama. Fechou os olhos, em busca do sono. Estremeceu ao lembrar os braços que envolveram o seu corpo molhado... Céus, nem sabia o nome dele. Melhor dormir. Amanhã seria mais um dia de trabalho.


(continua)



Pois é, meninas ( e meninos, se houverem)! Não resisti e acabei postando o terceiro capítulo. Espero que se divirtam com as confusões do Leo.
Beijos!!

sábado, 21 de agosto de 2010

Confusões de um Viúvo - Capítulo II


Como se metera naquela enrascada? Devia ter desconfiado que a ação de caridade do simpático casal tinha mão dupla, repreendia-se, enquanto se dirigiam para o restaurante. A irmã mais velha de Fabrício também fora convidada para sair. Obviamente que tudo tinha sido meticulosamente planejado para que ocorresse um “encontro às escuras” entre os dois. Leonardo não teve a menor chance. Marina e Tati já estavam brincando, animadíssimas, com Fabiana, a filha de 10 anos dos “cupidos”, quando percebeu a armadilha em que caíra. Não tinha como recuar, inventando uma dor de barriga ou algo similar. Agora era encarar o que vinha pela frente. Decidiram que iriam num só carro. Como Cláudia não bebia nada alcoólico, seria a motorista no final da confraternização e todos chegariam com segurança em casa. Pelo menos assim esperava.

Cláudia e Fabrício
Denise, como se chamava a irmã solteira de Fabrício, era funcionária de banco. Parecia pouco à vontade, assim como Leonardo. Mal pode ouvir sua voz durante o percurso. Ela parecia muito nervosa, mantendo-se junto à janela oposta à sua, olhando atentamente a rua e o movimento dos outros veículos. Mas isto durou pouco tempo. Já no restaurante, depois do primeiro cálice de vinho tinto, ela ficou mais relaxada e começou a falar sobre a sua instigante rotina como caixa. O pior foi quando ela começou a contar fatos supostamente engraçados e a bater com a mão na mesa. Ela parecia divertir-se muito analisando os diversos tipos de clientes que a procuravam em série. Segundo ela, até já arranjara dois ou três namorados nas intermináveis filas diante do seu guichê, mas infelizmente eles só tinham um interesse. O interesse econômico... Depois de dizer isso com expressão sarcástica, explodiu em novas gargalhadas, que provocaram um olhar de desprazer dos demais frequentadores. Cláudia até tentava conter os arroubos da cunhada, tentando mudar o assunto, mas a mulher não tinha controle. Dava para entender o porquê de ainda estar solteira. Pensando em Fabrício com uma peruca de cabelos louros um pouco mais longos, no escuro... Ele conseguia ser um pouco mais atraente que a irmã. Quando os seus pedidos finalmente chegaram, Denise começou a acalmar-se. Provavelmente o efeito de três taças de vinho a tivesse deprimido ou o nervosismo inicial desaparecera, pois ela ficou mais calada, para alívio dos comensais. Com isso, a conversa pareceu fluir melhor, convergindo para cinema, teatro, novos restaurantes na cidade e viagens, assuntos que há muitos meses não faziam parte da vida de Leonardo. Pouco antes de a sobremesa ser servida, uma risada deliciosamente agradável chamou sua atenção. Uma jovem de longos cabelos louros e seu acompanhante entrou no recinto, sentando-se na mesa indicada pelo garçom. Leonardo tinha a impressão de já a ter visto em outro lugar. Apesar de continuar ouvindo os argumentos de Cláudia defendendo o último filme de James Cameron, seu olhar não conseguia desviar do sorriso encantador da mulher sentada a poucos metros da sua mesa.

Bruna
 O encanto quebrou-se quando ela o olhou num misto de surpresa e dúvida, e cumprimentou-o com um meneio de cabeça, mostrando estar envaidecida por seu interesse. Isto fez Leonardo virar o rosto quase que instantaneamente, como um moleque pego em franco delito. Ficou irritado consigo pelo flagrante e pasmo por ela ter apresentado aquele tipo de atitude, tendo o namorado ao lado. Nem notou o brilho de interesse no olhar de Bruna, que nunca vira um homem ficar envergonhado por ter sido descoberto flertando.
- Você a conhece, Léo? – perguntou Cláudia que a tudo observava.
- O quê? Quem? – indagou atrapalhado.
- A moça daquela mesa. Você a conhece? – insistiu.
- Não... Achei ela parecida com uma prima. Mas não é – explicou mentindo.
- Ela está olhando para cá. Eu acho que a conheço de algum lugar também... De onde será? – disse forçando a memória, que não costumava ser o seu forte em matéria de fisionomias.
- Gente, acho que não estou passando muito bem – interrompeu Denise, com a face contorcida pela náusea e os lábios sem cor.
Leonardo ficou intimamente grato por Denise salvá-lo de mais explicações.
- O que está sentindo, Denise? – perguntou Fabrício preocupado com a irmã.
- Acho que foi o vinho. Não estou acostumada a beber.
- Você quase não tocou na comida – observou Cláudia – Quem sabe vamos dar uma chegadinha no banheiro e passar uma água no rosto?
- Talvez seja uma boa idéia, cunhada.
- Venha. Vamos antes que aconteça algo desagradável aqui no meio do restaurante – ordenou com firmeza, levantando-se e pegando Denise pelo braço, o mais discretamente possível.
- Desculpe a minha irmã, Léo, mas ela é meio fraca com bebidas alcoólicas – revelou, esperando que as mulheres se afastassem para que pudesse falar melhor sobre esta fraqueza em sua família – Certa vez...

- Porque esta cara de preocupada, Bruna? – perguntou Álvaro.
- Nada importante. É que acho que a mulher daquele homem, na mesa atrás de você, está passando mal. Mas não olha agora! – cochichou baixinho.
- E porque este seu interesse? Como sabe que ela é mulher dele? Você o conhece?
- Não, mas deve ser... Coitada. É que eu acho que ela ficou assim quando percebeu que ele estava olhando para cá.
- Ele a estava paquerando na frente da mulher?
- Não sei, mas ele não tirava o olho daqui. Acho que vou lá à toalete para ver se não precisa de ajuda.
- Você é louca?
- Por quê?
- Se acha que a mulher já está passando mal só porque o marido a olhou, imagina o que vai acontecer se você aparecer na frente dela, no banheiro?
- É, talvez tenha razão. O pior é que o marido não está nem aí. Olha só para ele – indicando Leonardo, que naquele momento ria com Fabrício. Este acabara de contar um fato hilário que acontecera com sua irmã, devido a sua dificuldade com o álcool.
- Olha aí! – regozijou-se Álvaro – O nosso jantar está chegando. Deixa prá lá este pessoal. Para mim, aquela mulher ou está fingindo para chamar a atenção dele ou só passou da conta na bebida. Provavelmente nem deve ter notado o marido olhando prá cá. E, aqui entre nós... Ele tem bons motivos para ficar olhando para outras mulheres – e caiu na risada – Eu olharia... Principalmente se aparecesse uma tão bonita quanto você.
- Engraçado... – murmurou Bruna, pensativa, não dando ouvidos ao elogio de Álvaro.
- O quê?
- Acho que conheço aquele homem de algum lugar. Não consigo lembrar de onde...
Logo sua atenção foi desviada para o prato que o garçom acabara de servir, com um suculento filé com molho de mostarda e uma porção dourada de batata suíça de aparência deliciosa.

- Será que a Denise está melhor? – perguntou Leonardo para o despreocupado irmão que ainda sorria divertido com o que acabara de contar.
- Pode deixar que se a Cláudia precisar de ajuda, ela chama. – dizendo isto, olhou na direção das toaletes e exclamou – Olha só elas aí – mostrando as duas voltando para a mesa – Parece que Denise está melhor... Por favor, não diga a ela que lhe contei sobre aquele incidente – disse num cochicho.
- Fique tranquilo – sussurrou de volta.
Leonardo levantou-se e, polidamente, ajudou Denise a sentar-se. Quando levantou os olhos, cruzou com o olhar da moça loura da outra mesa e conseguiu dar um sorriso. Foi a vez de ela baixar os olhos para o prato, deixando-o sem graça.
- Será que podemos ir embora? – perguntou Denise aborrecida – Desculpe, Leonardo, mas eu estraguei a nossa noite, não?
- Imagine só – Nossa noite? – Estava muito bom. Há muito tempo eu não me divertia tanto... – falou e deu-se conta da gafe - Isto é, eu quis dizer que... Desde que a minha mulher faleceu, eu não saía para jantar fora ou conversar com amigos – explicou, preocupado que a coitada pudesse pensar que a bebedeira dela fora o motivo da sua diversão.
- Eu entendo, sim – disse compreensiva, com um sorriso amarelo estampado no rosto pálido.
- Quer deixar as meninas dormindo lá em casa esta noite, Léo? – perguntou Cláudia.
- Não. Muito obrigado. Prefiro levá-las para casa.
Fabrício fez questão de pagar a conta, apesar dos pedidos de divisão dos gastos de Leonardo. Levantaram-se e antes de saírem, instintivamente ele voltou seu olhar para a jovem acompanhada. Ela também o observava indiscretamente. Desta vez nenhum deles sorriu.

Marina e Tati já dormiam, jogadas num dos sofás da sala enquanto Fabiana via um filme de suspense com sua babá. A primeira acordou ao ouvir a voz do pai. Esfregando os olhinhos, deu um abraço em Leonardo e perguntou se já estava na hora de ir para casa.
- Sim, meu bem, já está na hora. Papai vai levar a Tati no colo e você me ajuda com a maleta de brinquedos que trouxeram para a tia Cláudia. Tá bom?
- Sim, papai – respondeu com a voz arrastada.
- Precisa de ajuda para levá-las ao carro? – ofereceu-se Cláudia.
- Não, obrigado. Posso dar conta. Não se preocupe.
- Temos que repetir a dose outra noite destas – intrometeu-se Fabrício.
- Claro. A gente se fala. Obrigado, mais uma vez.
- Se precisar de alguma auxílio com as meninas, pode me ligar, Léo – colocou-se à disposição com sinceridade – Sei que a Cristina faria isso por Fabrício se ele precisasse.
- Se precisar, eu ligo. Obrigado. – respondeu emocionado, dando um beijo na face da amiga. – Boa noite.
Terminaram as despedidas e Leonardo foi com suas meninas para o carro, enquanto o casal acenava da porta de sua casa agradavelmente localizada entre árvores e canteiros floridos de um condomínio fechado na zona sul. Durante o trajeto, Marina pegou novamente no sono, enquanto Tati continuava ressonando. Apesar de já ter passado da meia-noite, as ruas continuavam movimentadas. O calor, que assolava aqueles últimos dias de Abril, mantinha os barzinhos da capital lotados, com suas mesinhas na calçada, as filas das danceterias repletas de adolescentes em animadas conversas ao ar livre. No silêncio do carro, olhou para o banco ao seu lado e viu Cristina a lhe sorrir, com a mão pousada em sua nuca, como ela sempre costumava fazer enquanto ele dirigia.

 De repente, o sorriso dela foi substituído por outro e, agora, quem estava ao seu lado era a mulher do restaurante. Tentou pensar em outra coisa, mas não conseguia fugir daquele olhar perturbador. Assim como Cláudia, também teve a impressão que a conhecia de algum lugar. Mas devia estar enganado, já que não tinha oportunidade de conhecer mulheres como aquela há muito tempo.
- Léo, não pensa em bobagens. A loura tem namorado ou marido, sei lá! E você tem duas filhas pequenas para criar. Aquiete-se. Não vai procurar sarna prá se coçar – falou em voz baixa, reprovando-se.

O domingo chegou prometendo ser mais um dia de sol, sem nuvens e abrasador. Nada como uma manhã radiante para sair com as filhas a passear no Parque Farroupilha, o mais antigo da capital e famoso local de encontro dos porto-alegrenses. Artistas e admiradores das artes, velhos e novos amigos, casados e solteiros, idosos e crianças. Todos estavam lá, a caminhar, sorrir e desfrutar das belezas do lugar. Também conhecido como Redenção, reunia uma variada feira de artesanato, uma exposição com venda de antiguidades ao ar livre e um parque de diversões, pequeno, mas eficiente para agradar aos pequenos. Todos estes atrativos ficavam acomodados nos limites do parque. Em meio à extensa área verde descobriam-se jardins temáticos, como o Jardim Oriental, que possuía uma réplica de um templo budista, e o Jardim Europeu, onde um chafariz em metal, presenteado pelo consulado francês no início do século, maravilhava os caminhantes.


Jardim Europeu
Ainda havia o lago artificial, construído na década de 1930, onde era possível navegar em pedalinhos, um espelho d’água, um majestoso anfiteatro e um mini-zoo. Por este democrático clima de festa, Leonardo e suas filhas foram envolvidos. Depois de uma ida ao parquinho, onde Marina e Tati andaram no carrossel, na mini-montanha russa e nos carrinhos antigos, saíram a passear entre as alamedas de árvores frondosas e arbustos perfumados a procura do lago.
Carrinhos antigos

Mini-montanha russa

Espelho d'água
Pedalinhos no lago artificial

Não houve como negar um passeio aquático. Para tal, Tati escolheu um simpático barquinho em forma de cisne branco onde cabiam os três componentes de sua família. Dando gritinhos de alegria, posicionou-se ao lado do pai, que começou a pedalar, movimentando a pequena embarcação. Percorriam o lago lentamente, sentados lado a lado, próximo às margens, quando a face de Marina iluminou-se.
- Papai! A professora Bruna, do balé! – exclamou apontando para outro pedalinho que estava no meio do lago, com um casal.
Forçando um pouco a vista através da intensa luminosidade criada pelo reflexo dos raios solares sobre a água, Leonardo foi surpreendido pela visão da jovem da noite anterior. Então se deu conta de onde já a tinha visto antes. Claro! Ela é a nova professora de balé, que substituiu a Ana, lembrou-se num momento.
Marina levantou-se dentro do barco, que começou a balançar perigosamente.
- Sente-se, Marina! – exigiu Leonardo, puxando-a firmemente pelo braço para que sentasse – O barco pode virar, minha filha – explicou compreensivo.
- Oi, Bruna! – gritou para que a professora a visse, abanando vigorosamente.
Bruna ouviu seu nome e virou-se na direção deles, tentando reconhecer quem chamava por seu nome. Ao ver Marina, acenou, identificando-a como uma de suas alunas.
- Papai, vamos lá! Vai!
- Não, minha filha, é melhor deixar. Ela deve estar com o namorado e nós vamos incomodar – objetou, no mesmo instante em que percebeu que o pedalinho de Bruna já estava vindo na direção deles.
O sorriso desapareceu do rosto de Bruna, por alguns instantes, ao reconhecer Leonardo, assim que emparelharam os cisnes lado a lado.
- Oi, Bruna! – saudou-a alegremente a menina.
- Oi, anjinho! Tudo bem? Também está passeando? – perguntou, retribuindo a alegre saudação da pequena, tentando desviar os olhos do rosto de Leonardo.
- Estamos sim. Esse é o papai e essa é a minha maninha, a Tati. Quem é esse moço? – perguntou, mortificando o pai com sua indiscrição pueril.
- Bom dia – cumprimentou formal, arriscando uma rápida olhada no pai, mas logo baixando os olhos para mirar na altura da cintura dele – Oi, Tati! – cumprimentou a menininha, que esticava o pescoço para vê-la melhor, saindo de trás do braço de Leonardo. – Este é o Álvaro.
- Muito prazer – disse o rapaz.
- Bom dia. Desculpem a Marina estar atrapalhando o namoro de vocês – disse acabrunhado – Ela quase virou o barco quando a viu.
- Eu não... Ui! – Álvaro começou a dizer, quando foi bruscamente interrompido por Bruna, que lhe deu um discreto cutucão no estomago.
- Está mesmo um belo dia para se passear por aqui – respondeu ela, tentando manter a naturalidade e ocultar os sinais de que o reconhecia da noite de sábado. Imaginou que, provavelmente a mãe das garotas não se recuperara da indisposição apresentada durante o jantar, já que não estava presente. Estaria ela na margem observando-os? Conjeturou consigo mesma.
Repentinamente Marina levantou-se e jogou os braços na direção de Bruna para abraçá-la. Leonardo tentou segurá-la pela cintura, sem notar que a pulseira da filha acabara de enganchar no colar de contas que adornava o pescoço da professora.
- Cuidado! Não a puxe! – gritou Bruna, pouco antes de Leonardo puxar a menina de volta para o seu lado. Com isso, ela desequilibrou-se e caiu no lago, levando junto a pulseirinha de conchas de Marina, que arrebentou na mesma hora.
- Oh, meu Deus – disseram os dois homens quase ao mesmo tempo.
- Ela não sabe nadar! – gritou Álvaro – Nem eu! – completou aterrorizado.
- Cuide das pequenas que eu a pego! – bradou Leonardo, despindo sua camisa rapidamente e jogando-se nas águas escuras onde Bruna debatia-se, tentando manter-se na superfície, ao som dos gritos de Tati, Marina e Álvaro.
- Calma, meninas! O seu pai já vem. Fiquem bem quietinhas aí, que ele foi salvar a tia Bruna – tentava tranquilizar as crianças e a si mesmo.
- Papai!
Logo os gritos chegaram aos ouvidos do responsável pelos pedalinhos. Ele identificou de onde vinham e detectou a operação de salvamento que Leonardo tentava realizar.
- Pare de se debater, por favor! – comandava ele, enquanto recebia tapas de Bruna, que tentava lutar contra as águas – Deixe que eu a seguro! – disse quando finalmente ela encontrou o olhar firme dele e deixou-se ficar em seus braços.
Quando a lancha, mais usada para a manutenção do lago que para salvamentos, chegou, Leonardo já conseguira agarrar a professora e levá-la até o cisne em que estava Álvaro desesperado, sem saber se por Bruna, pelos gritos apavorados das crianças ou por ambos.
- Pegue-a! Coloque-a para dentro! – ordenou Leonardo segurando-a firmemente pela cintura.
Bruna levantou os braços e foi içada para a embarcação oscilante. Ela estava penalizada com a situação. Mal conseguia falar, quando viu seu salvador tentar subir em seu cisne. Leonardo desistiu de tentar quando compreendeu que o pedalinho poderia virar com suas filhas dentro. Logo a lancha do parque chegou.
- Moço, suba aqui! - falou o funcionário estendendo-lhe a mão.
- Mas as minhas filhas...
- Pode deixar que eu as pego logo em seguida. Agora, suba aqui, por favor.
O homem ajudou-o a entrar na lancha, sob os olhares assustados de Marina e Tati. Trêmula e acolhida por Álvaro, Bruna a tudo observava, muda.
Quando conseguiram transferir as irmãs para junto dele, Leonardo lembrou-se de sua socorrida.
- E você, como está? – perguntou a ela, visivelmente preocupado, lutando para desviar os olhos da camiseta molhada, aderida aos seios firmes e arredondados sob um soutien de renda, tornados visíveis por transparência.
- Ensopada, graças a você! – A exclamação tirou-o de sua distração.
- Bruna, ele a salvou... – interferiu Álvaro – Você podia ter se afogado.
- Mas foi ele que me jogou neste lago – disse indignada, antes de soltar um brutal espirro.
- Saúde! – disse Marina de mãos dadas com o pai, amolecendo o coração de Bruna.
- Obrigada, anjinho.
- Desculpe, Tia Bruna... – falou Marina preocupada e tristonha.
- Não foi nada, meu bem. Não foi sua culpa... – disse enternecida, antes de voltar o olhar irritado para Leonardo, que acabava de pegar sua camisa de volta e a vestia, escondendo a silhueta magra, mas de tórax atlético e braços de músculos definidos e fortes, que se mostravam a cada movimento seu.
- Olhe, não foi minha intenção. Foi um acidente... Eu nem sei como aconteceu... – desculpou-se desolado, enquanto abotoava os últimos botões da camisa. Resolveu não falar que pensara primeiro na filha, apavorado com a idéia que ela caísse naquelas águas. Não queria piorar a situação.
- Tudo bem. Vamos, Álvaro. Vamos embora daqui, logo. Pedala, pelo amor de Deus – ordenou, soltando um discreto suspiro.
- A senhora não quer que eu a leve na lancha? – perguntou o funcionário tentando acalmá-la – É só o tempo de levar eles para o deck – apontou para a família – e voltar para pegar vocês.
- Sim,... – começou a dizer Álvaro, aceitando a oferta.
- Não, obrigada. Pedala, Álvaro! – sua irritação aumentava, principalmente porque começava a aglomerar um grande número de pessoas que assistiam ao espetáculo proporcionado por eles – Se não sairmos daqui agora, logo vamos aparecer em todos os jornais amanhã.
- Ora, uma publicidade de graça sempre é bem vinda – ele brincou.
- Álvaro! – ela poderia bater nele, mas conteve-se.
- Realmente, me desculpe. Eu não tive a intenção – repetiu Leonardo também começando a ficar irritado com a atitude de Bruna e com seu próprio estado lastimável – E se não quer reconhecer isto, tanto faz – desferiu aborrecido, pedindo ao rapaz da lancha que os levasse logo para o ponto de partida.
Ela o olhou novamente e quase se arrependeu do que tinha dito, culpando-o pelo acidente, vendo-o cercado pelas duas meninas apavoradas e tão encharcado quanto ela.
- Está tudo bem agora – foi o que conseguiu dizer sem olhá-lo, ajeitando o cabelo e acomodando-se no banco do pedalinho – Vamos, Álvaro.
O rapaz começou a pedalar rapidamente, obedecendo a ordem proferida, enquanto a família de Leonardo deslocava-se na direção do deck.
Lá chegando, agradeceu ao homem que os ajudara e decidiu não esperar por Bruna, que discutia com o namorado, apesar de não poder ouvir o que ela dizia. Pelo visto, agora, passado o susto, Álvaro se divertia com a irritação dela enquanto pedalava na direção deles.
- É melhor irmos para casa. Por hoje, chega de passeios na Redenção – falou para as filhas, pegando-as pela mão, e enfrentando os olhares dos curiosos que formavam um corredor polonês em sua passagem.
Não via a hora de voltar para a casa. Como morava próximo à Redenção, resolvera ir a pé para aproveitar o clima de verão extendido. Leonardo jamais imaginou que pudesse retornar ao seu apartamento com os jeans pingando água pelo caminho, enquanto os tênis faziam aquele desagradável som de borracha amassada – Shrec, shrec, shrec – a cada passada. Os transeuntes, sem exceção, que passavam por ele, o olhavam dos pés à cabeça de cabelos escorridos, com expressões diversas. Os mais jovens, davam risadinhas disfarçadas, e os mais velhos não escondiam as expressões horrorizadas, provavelmente imaginando que ele estivesse bêbado e tivesse caído numa das fontes do parque. Pobres crianças... Deveria ser o pensamento seguinte.
A tortura logo acabou, depois de entrar no saguão de seu prédio e dar uma rápida explicação ao porteiro, antes que ele também criasse idéias erradas a seu respeito. Entretanto, por incrível, que parecesse, o que mais o incomodava agora, não era o estado em que se encontrava nem as críticas erráticas, mas o olhar acusador de Bruna. Ela poderia ter se afogado não fosse ele, pois o inútil do seu namorado também não sabia nadar. Certamente ela seria uma daquelas que se preocupam mais com a aparência do que com a própria vida. E pensar que... Resolveu procurar esquecer o olhar inebriante que lhe tirara o sono durante a noite passada e preocupar-se em recuperar sua aparência normal.
Foram para casa. Leonardo tomou um banho e saiu novamente com as filhas. Tinha combinado de almoçar com seus pais. Sua mãe, Leonor, apesar de abalada fisicamente, não admitia deixar de lado o almoço de domingo. Fazia questão de receber os dois filhos, Miguel e Leonardo, e as duas netas. Era a oportunidade que tinha para vê-los na semana. Há três meses, num exame de rotina normal, descobrira um câncer de mama e desde então iniciara um tratamento agressivo para conter a doença. Inicialmente submetera-se à cirurgia e agora enfrentava uma guerra química. Antes desta enfermidade, era uma mulher muito ativa, pronta a ajudar seus familiares. Ela fora essencial, cuidando das crianças e, de certa forma, de Leonardo, nos primeiros meses após a morte prematura e inesperada de Cristina. Miguel ainda morava com os pais, apesar de já ter se formado e trabalhar num famoso escritório de advocacia, sendo independente economicamente. Tinha três anos menos que Leonardo, mas ao contrário do irmão, tinha fama de grande conquistador. Sempre dizia que era prático morar com os pais, pois quando alguma garota demonstrava o interesse de ir um pouco mais além do que uma relação descompromissada, ele a levava a casa e mostrava onde pretendia morar depois de casado. Não demorava muito para a namorada descobrir que não estava tão apaixonada assim e que precisava de um tempo para pensar. Ao cabo do tempo solicitado, todas chegavam à conclusão de que era muito cedo para casar e procuravam outra “vítima”, segundo Miguel.
Miguel
Sua mãe parecia ainda mais debilitada que na última vez que a vira, na semana anterior. Esforçava-se para não demonstrar a dor que sentia ao vê-la definhando daquele jeito. Havia emagrecido muito. As marcas de expressão estavam mais acentuadas devidas à flacidez da pele e o cabelo, ou o que restava dele, mantinha escondido sob um lenço de seda, que mudava de cor conforme a ocasião. Naquele domingo, ostentava a cor vermelha. Apesar de todo este quadro, Leonor continuava bem-humorada, na maioria das vezes fazendo graça de seu aspecto e de seu tratamento.
- Vovó, porque não tira este lenço? – perguntou Tati, inocentemente.
- Porque a vovó está fazendo um tratamento secreto de beleza para renovar toda a cabeleira – respondeu cochichando, como se fosse segredo, diante do rostinho cheio de curiosidade da neta – Promete que não conta para ninguém?
- Nem prá Marina? – sussurrou de volta.
- Prá Marina pode... Eu deixo. – retrucou sorrindo.
- Marina! – gritou pela irmã e saiu correndo pela sala.
- Elas estão cada dia mais lindas, benzadeus... – observou orgulhosa.
- E a senhora, mãe? – perguntou Leonardo – O que o médico falou?
- Vai “reavaliar a situação assim que terminar este ciclo de quimio” – disse imitando a voz grossa de seu médico.
- Ela passa o tempo todo sem levar nada a sério – queixou-se seu pai – Parece que a doença foi para a cabeça.
- E o seu pai fica resmungando o tempo todo. Preocupa-se demais...
- Mãe, a senhora sabe que isto é muito sério. Todos nós estamos preocupados com você.
- Não se preocupem. Eu estou fazendo tudo o que o médico manda. Preocupação só vai fazer aumentar as rugas – disse dando, em si mesma, tapinhas na face. – E vamos mudar de assunto, gente!
D. Leonor
Conte-me o que aconteceu hoje na Redenção. A Marina e a Tati me disseram que você caiu no lago? O que houve, meu filho?
Leonor conseguira mudar o rumo da conversa. Leonardo passou a fazer um relato completo do que ocorrera durante a manhã.
- Se precisar de advogado prá livrá-lo de um processo desta deusa, pode me chamar – brincou Miguel, enquanto conversava com o irmão, sentados no pátio interno da casa, tomando café depois do almoço.
- Como sabe que ela é uma deusa? – perguntou desconfiado.
- É só ver o seu jeito falando dela. Se ela fosse um jaburu, nós já teríamos ouvido todo o tipo de xingamento sobre a feiúra dela. Além do mais, nunca vi uma bailarina feia. Deve ter um corpo espetacular – especulou imaginando como seria a mulher que perturbara seu irmão – Tive uma amiga que fazia dança contemporânea durante a faculdade. Lembro que tinha um corpão. Infelizmente não queria nada comigo. Só amizade... – ficou pensativo – Nunca mais a vi. Ela resolveu seguir a carreira de bailarina e acabou indo para o exterior...
- Você só pensa nisso, Miguel.
- E você devia pensar NISSO... – disse, inclinando-se na direção de Leonardo – Mano, há quanto tempo não...? – fazendo um gesto com a mão em concha, virada para o chão, movimentando o punho, sugerindo uma transa.
- Não interessa – respondeu amuado.
- Cara, olha que aquilo sobe prá cabeça e daí já viu... – e explodiu numa gargalhada, encarando o olhar entediado de Léo. Quando parou de rir, continuou – Tá bom, desculpe... É brincadeira... Mas já faz mais de um ano que a Cris morreu... E você? Nunca mais...?
- Não tenho tempo para me preocupar com isso. Preciso cuidar das minhas filhas. Elas são mais importantes que tudo mais.
- Eu sei. Concordo contigo. Não estou dizendo para deixá-las de lado. Só acho que tem coisas que a gente tem que extravasar de vez em quando. Você me entende, não?
- No momento isto não é importante, Miguel.
- Vai virar um monge agora...
- Olha, dá licença. Vou falar com o pai. Acho que ele está precisando de apoio. Tem conversado com ele sobre o problema da mãe?
- Ele está mal... – ficou sério repentinamente – Estes dias, cheguei de madrugada e surpreendi-o chorando no gabinete, sozinho. Se continuar assim, o velho vai antes da mãe. O pior é que ele não quer se abrir comigo. Deve pensar que sou um “cabeça de vento”.
- E não é? – disse Leonardo esboçando um sorriso.
- Você sabe que não. Eu posso parecer um merda, mas me preocupo muito com eles. No fundo, continuo aqui por causa deles. Tenho medo que aconteça alguma coisa, um mal estar... Sozinhos nesta casa enorme. A estória de afastar “moças casadouras” é uma meia verdade.
- É, eu sei, mano, e agradeço por ter este cuidado com eles.
Abraçaram-se, esquecidos das diferenças e compartilhando em silêncio seus temores, agora mais reais, desde a notícia da doença de D. Leonor.


(continua...)



Espero que tenham gostado da escolha dos atores para cada personagem.
Um maravilhoso fim de semana para todos!
Beijos!